Crítica Sara Figueiredo Costa 17 Dezembro 2021

A memória como uma das Belas-Artes

1000 Anos de Alegrias e Tristezas
Ai Weiwei
Objectiva
Tradução de Isabel Veríssimo

Em 1987, Ai Weiwei vivia em Nova Iorque e tentava perceber qual poderia ser o seu caminho no mundo da arte. Com pouco dinheiro, numa situação burocrática precária à conta da documentação exigida para ser estudante nos Estados Unidos da América e sem grandes perspetivas relativamente ao futuro, o então desconhecido artista cruzou-se com várias figuras do mundo das artes e das letras e fez desses encontros combustível para o seu pensamento. É nesse ano que o poeta Allen Ginsberg, que havia conhecido o seu pai, Ai Qing, na China, muitos anos antes, lhe atira estas palavras, às quais Ai Weiwei reagirá já na segunda década do século XXI:  «“Tens de escrever as tuas memórias. O primeiro pensamento é o melhor pensamento.” Não compreendi o que ele disse, pois não sentia qualquer ligação às minhas memórias. As minhas memórias não me pertenciam; nos episódios que recordava com maior clareza, a minha existência era anulada e escrevê-los seria como atirar uma mão cheia de areia para o vento. Só décadas mais tarde conseguiria dar substância a essas memórias.» (pg.227)

Chegamos, então, a 2021, ano do lançamento de 1000 Anos de Alegrias e Tristezas em vários idiomas, entre eles o português. Ai Weiwei é hoje o mais conhecido artista chinês da actualidade, pese embora os esforços que o regime político da China tem feito para impedir tal consagração.

Depois da sua prisão, em 2011, e da sucessão de interrogatórios, acusações sem prova feita e perseguições várias, saiu de Pequim com um bilhete de avião destinado a Berlim e, desde então, tem vivido em diferentes lugares da Europa – inclusive em Portugal, onde tem residência. A obra e o reconhecimento internacional do artista misturaram-se com a sua postura intransigente perante o desrespeito dos direitos humanos levado a cabo pelo governo chinês e com uma atitude de discussão e intervenção sobre o mundo. Será um lugar-comum esta imagem do artista comprometido, mas Ai Weiwei não assina o discurso do compromisso de ânimo leve: «Para mim, a arte é uma relação dinâmica com a realidade, com a nossa forma de vida e com a nossa atitude perante a vida, e não devia ser colocada num compartimento diferente. Não tenho interesse na arte que procura manter-se diferente da realidade.» (pg. 287)

As memórias de Ai Weiwei começam, na verdade, com as memórias do seu pai, o escritor Ai Qing, autor do poema de onde o filho retirou o título para este livro. Ou com aquilo que Ai Weiwei recorda dessas memórias, ainda antes de os destinos de ambos se misturarem. Ai Qing estudou em Paris, no início do século passado, e pensava dedicar a sua vida à escrita, de regresso à China. A impossibilidade de permanecer em silêncio quando o regime de Mao Tsé-Tung iniciou as suas diligências para calar todos aqueles que tinham algo a criticar – depois de ter apelado a que todos falassem honestamente e apontassem aquilo que lhes parecia precisar de outro rumo – fez dele um “direitista”, o que lhe valeu a deslocação para um campo de trabalhos forçados numa região desolada do Noroeste da China conhecida como Pequena Sibéria. A escrita, apesar disso, nunca parou.

Se a fase parisiense de Ai Qing é contada por Ai Weiwei a partir da memória do pai, bem como dos fragmentos que entretanto foi coligindo sobre a sua vida, a longa estada na Pequena Sibéria é partilhada por quem também a viveu. Ai Weiwei era uma criança quando a família foi desterrada à força e não esqueceu a violência, a falta de comida, as humilhações e as ratazanas que dividiam consigo e com os pais o miserável buraco debaixo da terra que o Estado lhes destinou como casa para a “reabilitação”.

E antes disso, não esqueceu igualmente aquele momento, depois das primeiras ameaças concretizadas contra o seu pai, ainda em Pequim, em que decidiram queimar os livros que Ai Qing guardava nas estantes, por perceberem que seriam usados, mais tarde ou mais cedo, para confirmar o seu estatuto de pária. Entre esses livros havia muitos álbuns de pintura que Ai Weiwei  folheava com curiosidade. A dada altura, diz: «No momento em que se transformaram em cinza, uma estranha força apoderou-se de mim. A partir daquele momento, aquela força controlaria cada vez mais o meu corpo e a minha mente até assumir uma forma que mesmo o pior inimigo consideraria intimidante. Foi um compromisso com a razão, com a noção de beleza – estas coisas são implacáveis, inflexíveis, e qualquer esforço para suprimi-las provoca quase certamente resistência.» (pg.168)

Anos mais tarde, no início dos anos 80, quando surge a oportunidade de deixar o país, o então estudante de cinema de animação agarra-se a ela como a uma bóia e ruma a Nova Iorque. É aí que começa a definir o seu percurso artístico e é também aí que acompanha os acontecimentos que fizeram de Tiananmen uma das praças mais conhecidas do mundo, a mesma praça onde a internet permitida na China não deixa descobrir nada que remeta para banhos de sangue. Com o pai muito envelhecido e um desconforto permanente instalado na mente, decide regressar à China.

Depois do regresso, em 1993, e do início de um percurso artístico mais definido e consciente, o texto das memórias de Ai Weiwei entra em velocidade cruzeiro, estruturando-se sobretudo no registo da sucessão de acontecimentos e não tanto nas divagações memorialísticas que marcam a primeira parte do livro. Sucedem-se as peças que vai criando, os livros de fotografia que publica, as exposições, até ser já um artista reconhecido fora da China. É uma diferença de ritmo que se nota, talvez porque a partir daqui, a prosa está mais focada na cronologia e menos nos pensamentos e emoções que dela se libertam.

Apesar disso, o texto nunca resvala para a mera prova de vida, voltando a ganhar fôlego perto do fim, quando o autor conta com detalhe o processo da sua detenção pela Segurança do Estado e os longos meses que se lhe seguiram, voltando a puxar o fio que o liga ao seu pai e, agora, ao seu filho, Ai Lao.

As memórias de Ai Weiwei não deixam de ser um documento importante sobre a história da China no século XX e neste início agitado de novo século, sendo igualmente um registo cronológico e biográfico do percurso de quem as escreve, ciente de que a memória não é um livro de registos certeiros, mas antes uma confluência de emoções, umas vezes bem situadas, outras desorganizadas pelo olhar que se faz inevitavelmente a partir do presente. 1000 Anos de Alegrias e Tristezas é sobretudo uma longa reflexão sobre a memória e o modo como a matéria de que é feita vai sendo revisita à medida que o tempo passa, ligando a história individual com a colectiva, a intimidade com a política. É essa ligação que encontramos em todas as criações plásticas de Ai Weiwei e talvez estas memórias devam ser lidas como mais uma dessas criações, fazendo jus ao mote de não separar aquilo que se cria da vida que se vive.

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