A infância enterrada nos esteiros do Tejo
Oitenta anos depois da primeira edição, Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, regressa às livrarias numa edição da Quetzal, resgatando a infância miserável de Gineto, Gaitinhas, Guedelhas, Saguí e Maquineta para o panteão literário de onde, na verdade, nunca saiu.
Quando Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, chegou pela primeira vez às livrarias, os tempos eram de censura a tudo quando criticasse o regime de Salazar. A edição com chancela das Edições Sirius, datada de 1941, integrava ilustrações de Álvaro Cunhal (igualmente autor da imagem da capa) e acompanhava os alvores do neo-realismo literário português, oficialmente inaugurado com a publicação, dois anos antes, de Gaibéus, de Alves Redol. A censura, no entanto, não deu pelo livro de Soeiro Pereira Gomes, ou porque não lhe passou pelas mãos, ou porque algum censor com poucas capacidades de interpretação literária – algo que acontecia com muita frequência – não percebeu a crítica implícita a um regime que silenciava a miséria com a mesma mão-forte com que abafava os protestos.
Só em 1966, quando alcançou a 5ª edição, Esteiros foi notado nas suas muitas cambiantes pelo radar do lápis azul. O censor que elaborou o relatório fazia notar que, ainda que não houvesse imoralidade ou pornografia nas suas páginas (mesmo que houvesse duas situações narrativas, pudicamente anotadas, que incluíam relações sexuais), havia referências à «injustiça, a exploração da miséria, resultado das desigualdades sociais, no que o livro não é justo, mas antes especula». De qualquer modo, parecia à censura que o facto de Esteiros ter chegado à 5ª edição anunciava o seu sucesso entre os leitores, fazendo com que uma retirada brusca das livrarias ou uma proibição sumária fossem contraproducentes. As capacidades de leitura da censura ter-se-ão refinado com o passar dos anos, bem como as de percepção da situação social. Um quarto de século depois da primeira edição de Esteiros, lê-se no relatório:
«Julgo por isso que este livro deveria ter sido proíbido [sic] quando apareceu, mas agora deve ser ignorado, pois que a proíbição [sic] agora, só servia à sua propaganda no nosso meio, que o poderia ignorar.»
Já era tarde, portanto, para evitar o impacto do romance de Soeiro Pereira Gomes nos seus leitores e até a censura o sabia.
Retrato do Ribatejo e do país
A acção de Esteiros decorre junto ao rio Tejo, centrada numa fábrica rudimentar de telhas e tijolos cuja matéria-prima se retirava desses «minúsculos canais como dedos de mão espalmada» que o romance apresenta ainda antes de se iniciar. A estratificação social que caracterizava a região, sem deixar de caracterizar, ainda que de modo menos particular, o resto do país está toda naquelas descrições do trabalho nos esteiros, mas também no decorrer dos dias de quem vive uma pobreza fortemente alicerçada na arrumação social por camadas, que Pereira Gomes encena magistralmente quando contrasta a quinta grande, com os seus pomares guardados a tiros de caçadeira, e as barracas de frágil telhado onde vivem muitos dos habitantes locais. Do Senhor Castro, dono da quinta, à mais miserável das crianças que chafurda no lodo do Tejo para alcançar o barro que há-de ser telha, Esteiros declina uma longa hierarquia de posses materiais e lugares sociais, com os pequenos poderes mais ou menos institucionais a serem, simultaneamente, obedientes a quem manda e carrascos de quem obedece.
Uma das particularidades de Esteiros reside no facto de serem crianças as suas personagens principais, uma originalidade que há-de repetir-se noutras obras neo-realistas, não apenas em Portugal. O grupo de rapazes que não conhecem outra alternativa que não a do trabalho – forçado, rodeado de humilhações e mal pago – existe plenamente do ponto de vista narrativo como personagem colectiva, retratando o trabalho infantil a par com a miséria geral. São esses rapazes que trabalham na fábrica de tijolos, lado a lado com os homens (às mulheres reserva-se um posto na tecelagem, com sorte, e toda a carga de trabalhos domésticos, para além dos biscates para fora), entregando o seu Verão à dureza que lhes permitirá recolher alguns trocos para assegurar a sobrevivência:
«Era uma fila de garotos, num vaivém contínuo, que fazia lembrar um formigueiro em meio de resteva. Vinha do fundo da eira, onde a charca velha gerava desejos de frescura, serpenteava entre as pilhas de lenha; e sumia-se, por fim, pela porta do forno, em que mal cabia um homem.» (pág. 212)
O trabalho é sazonal, porque a época chuvas não permite o fabrico artesanal de telhas e tijolos, e Esteiros acompanha igualmente o resto do ano, mostrando, numa divisão em partes que correspondem a cada uma das quatro estações, que a miséria que lemos nas descrições da laboração entre o lodo do Tejo e a cozedura das telhas nos fornos se acentua assim que a fábrica suspende a sua produção, com os primeiros aguaceiros, deixando os rapazes sem outra coisa que não o roubo de fruta, quando a há, ou os biscates eventuais – poucos, que o tempo era de guerra na Europa e, por cá, mesmo sem bombas a cair, a vida não era fácil para parte considerável da população. Quando à crise económica e social motivada pela guerra, lá fora, e pelo fascismo, cá dentro, se juntam as imensas cheias do Tejo, a miséria há-de transbordar com as águas, deixando um rasto de morte e desespero onde já não se pensava que a vida pudesse piorar.
Literatura e luta de classes
A construção desta personagem colectiva é uma das marcas de água do neo-realismo, num fôlego que cruza literatura e política, procurando resgatar as linhas mestras do realismo literário e juntá-las à visão marxista e dialéctica da História. Publicadas as primeiras obras do movimento, as discussões que entrincheiraram os defensores da arte pela arte e os arautos da arte como mensagem política animaram o neo-realismo português – como já haviam animado outros fóruns político-culturais, noutros países – sem que uma linha vermelha tenha sido traçada de modo indelével. Em Esteiros, é inegável a visão política do seu autor, um militante do Partido Comunista Português que levou o compromisso até à clandestinidade, e é difícil (e talvez pouco interessante) ler este romance sem ter presente essa mundividência que se engrandecia numa luta por melhores condições de vida e por uma mudança histórica profunda.
O facto de ter morrido com apenas 40 anos, em 1949, impede-nos de saber que revisitações faria Soeiro Pereira Gomes a esta sua obra, à semelhança do que fez Alves Redol em 1965, no prefácio a mais uma edição de Gaibéus, quando reconheceu que uma parte da sanha exercida na escrita pelos que não abdicavam da arte enquanto gesto político era mais reacção ao outro lado da barricada do que recusa absoluta de uma criação artística e literária envolvida na elaboração da linguagem e na tentativa de a universalizar e tornar intemporal:
«Como, porém, esses outros escritores se vangloriavam da sua posição extrema de arte pela arte, desfigurando-a, a reacção operou-se também por outro excesso, fenómeno natural no jogo das contradições, principalmente quando vem de jovens que se supõem, e ainda bem, capazes de renovar o mundo, o homem e a arte.» (Gaibéus, Publicações Europa-América, 1971).
Mais adiante, Redol classificará de «aparente» o desprezo «por tudo o que representasse literatura sem raízes sociais bem vincadas», notando que muitos neo-realistas eram herdeiros, directos e assumidos, dos autores da Presença ou de escritores como García Lorca, Rafael Alberti, Antonio Machado ou Paul Éluard. Se não é possível antever que tipo de reconciliação teria tido Soeiro Pereira Gomes com uma visão mais recente da literatura, ou de que modo leria os inícios do neo-realismo português, para os quais contribuiu tão decisivamente, à luz de uma realidade posterior, é elementar reconhecer em Esteiros o trabalho dedicado com a linguagem, a busca de recursos estilísticos que unem o destino de cada personagem a uma certa ideia de natureza, cíclica e implacável, o labor na construção dos diálogos, directos, absolutamente verosímeis e capazes de reflectir a riqueza linguística escondida na pobreza do quotidiano.
Resgatar a infância
É uma personagem colectiva que estrutura a narrativa de Esteiros, mas não falta individualidade a Gineto, Gaitinhas, Guedelhas, Saguí e Maquineta, os rapazes que não conhecem outra alternativa que não a do trabalho – forçado, rodeado de humilhações e mal pago. A complexidade de cada uma destas figuras reflecte um conhecimento profundo da infância e das suas particularidades no que à percepção do mundo e das relações diz respeito, bem como dos impactos que o desamparo, a pobreza e a insegurança têm nesta fase da vida.
Não é por acaso que Pereira Gomes dedica este livro aos «filhos dos homens que nunca foram meninos», num gesto que denuncia o modo como demasiadas crianças foram obrigadas a crescer, ao mesmo tempo que procura resgatar o muito pouco de inocência, receptividade e fantasia que assoma, por vezes, nos dias destes rapazes.
Oitenta anos passados sobre a primeira edição, Esteiros não perdeu a força de grande romance. Com várias edições ainda durante a ditadura, os ânimos revolucionários do pós-25 de Abril colocá-lo-ão no cânone das leituras escolares, de onde acabará por sair, talvez com o arrefecimento de tais ânimos, confirmando que as leituras oficialmente recomendadas para os estudantes mereciam escolhas mais motivadas do que o simples impulso dos ares do tempo. Será datada a realidade que Esteiros fixa enquanto retrato fiel da sociedade portuguesa (felizmente, podemos acrescentar, ao mesmo tempo que lembramos que o trabalho infantil não desapareceu há tanto tempo como gostaríamos de acreditar, sendo uma realidade que se mantém em tantos países), mas mantém-se intemporal a vontade de ver e conhecer quem connosco partilha espaço e tempo – e com isso vermo-nos também, talvez mais profundamente – , de encontrar beleza na mais funda fealdade, de encenar a vida nas suas tantas possibilidades e reviravoltas.