Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Julho 2022

A estranheza que nos molda

O Amor no Novo Milénio
Can Xue
Quetzal
Tradução de Helder Moura Pereira

Nascida em Hunan, em 1953, Can Xue tem-se distinguido sobretudo como autora de contos e narrativas breves, por vezes intervaladas por obras de maior fôlego, mas sempre marcando os seus textos com uma clara vontade de experimentação com a linguagem e com a sua relação com aquilo a que chamamos realidade. Recusando os mecanismos do realismo, a autora recorre frequentemente a desvios da verosimilhança, deturpações da noção de tempo e sobreposições entre universos aparentemente incompatíveis, mas o resultado nunca é um universo a que pudéssemos chamar paralelo ou um registo que se escuda no fantástico. Pelo contrário, o apodo de “vanguardista” que tantos críticos utilizam para se referirem a Can Xue não se justifica pelo recursos narrativos de que a autora se socorre, mas à sua capacidade de colocar todos esses recursos ao serviço de narrativas em que nos reconhecemos de modo intemporal, independentemente da estranheza dos seus cenários, das suas personagens ou dos pontos de vista narratológicos (leia-se o conto «Vertical Motion», narrado por um micro-organismo subterrâneo e informe, infelizmente apenas disponível em inglês, para além da língua original). Aparentando ser uma história estruturalmente mais tradicional, o romance que a Quetzal agora publica em português não foge a essa regra.

As primeiras páginas de O Amor no Novo Milénio criam a ilusão de que acompanharemos a história de Cuilan, viúva que mantém uma relação amorosa com Wei Bo. Quando outras personagens começam a entrar em cena, percebe-se que este romance não é sobre Cuilan, nem Wei Bo, nem nenhuma outra das personagens que vai dando entrada na teia narrativa. À semelhança de outros textos, alguns igualmente extensos, outros muito mais breves do que este, o romance de Can Xue não é a história de ninguém e talvez nem sequer seja uma história, pelo menos no sentido estruturado que habitualmente configura uma narrativa. Este é um romance-novelo, que se vai desfiando sem outro foco que não o seu próprio avanço. E sempre iluminando a estranheza como elemento que nos define a essência, por mais arrumações de que nos socorramos para acreditar no oposto.

As personagens existem, ainda assim, e é dos seus gestos, mas sobretudo das suas relações e das suas deambulações mentais, que nascem os tantos fios narrativos que aqui se cruzam. A partir da relação sempre tremida de Cuilan com Wei Bo ficamos a conhecer outros amores deste homem casado, e daí abre-se uma espécie de árvore que vai conectando várias relações: a de Xiao Yuan, mulher de Wei Bo, com o Dr. Liu, um homem que conhece numa viagem de comboio; a do avaliador de antiguidades, Sr. You, com A Liang; a das duas amigas que abandonam a fábrica de algodão para se dedicarem à prostituição, Jin Zhu e Long Sixiang, com o empresário agrícola Lao Yong. Todas estas personagens se cruzam na mesma cidade – sem nome nem localização –  e parte delas mantém relacionamentos amorosos entre si em diferentes momentos da narrativa, mas o que de facto define estas personagens são as ligações invisíveis que as prendem. Can Xue cria com mestria uma série de laços que passam pelo passado, por velhas lendas, pela memória dos lugares da infância, e é esse lastro subterrâneo que une as personagens, de um modo que é preciso ir decifrando ao longo dos capítulos.

As novas formas de relacionamento amoroso sugeridas pelo título do romance são, na verdade, tão antigas como sempre as conhecemos. A novidade estará na leveza com que se saltam etapas que anteriormente seriam impostas por uma sociedade marcada pela tradição, com os relacionamentos extra-conjugais a serem mantidos secretos e negados em caso de descoberta. Aqui, temos mulheres independentes que decidem o seu rumo sem pedir licença a quaisquer figuras de autoridade, escolhendo amantes, conjurando esquemas de enriquecimento rápido, prostituindo-se com a consciência do que fazem – e a certeza de que essa escolha é mais favorável à sua vida do que o trabalho repetitivo, mal pago e prejudicial à saúde que têm na fábrica de algodão – e assumindo as suas decisões. Aí está o novo milénio, numa China ainda fincada em convenções sociais que não permitem este género de liberdade, mas já sem mecanismos que a impeçam de acontecer se alguém avançar para ela.

O tom fantástico que a narrativa por vezes assume, com cenários do passado irrompendo no presente, mortos que deambulam e falam com os vivos e objectos antigos que impõem os seus significados perdidos no presente, permite a Can Xue introduzir no texto uma série de temas que se reconhecem em alguma da literatura chinesa contemporânea. Mas onde outros escritores abordam de modo directo a questão da urbanização que avança, terraplanando aldeias e velhos modos de vida, ou o controlo das autoridades sobre os movimentos dos cidadãos, Can Xue coloca esses temas num contínuo temporal que não separa passado e presente. De certo modo, uma das características desta autora é precisamente a negação de fronteiras estanques no tempo, aquelas a que recorremos para arrumar a cronologia, preferindo olhar para as muitas camadas que cada momento inclui e assumir que o passado – das aldeias, das tradições, dos que já morreram – integra o presente. Os conflitos gerados por essa integração, por vezes assumindo sobreposições a que só um registo fantástico atribui verosimilhança, são a matéria permanente deste romance, de um modo muito mais significativo do que o amor que lhe estrutura o título.

À semelhança de outros textos da sua autoria, Can Xue cria neste romance muito mais do que um cenário onde a acção se desenrola. O Amor no Novo Milénio coloca a leitura num estado mental que, aceitando os códigos do fantástico, aceita igualmente as regras do realismo, assumindo (e comprovando) que os dois pontos de vista são compatíveis. À leitura resta aceitar a entrada nesse estado mental e explorar as imensas construções narrativas que daí nascem, umas vezes convocando os labirintos psicanalíticos onde passado e presente convivem, outras mergulhando num transe que lembra a vertente onírica do Surrealismo, levando-a a um patamar contemporâneo onde o absurdo que rodeia as personagens se mostra capaz de ultrapassar tudo aquilo que imaginaríamos não poder ser mais do que fantasia. É um jogo intenso e que deixa muitas vezes o leitor sem chão, desconfiando dos pontos de apoio que foi construindo até aí e confirmando que Can Xue é uma das vozes mais desconcertantes da literatura chinesa contemporânea – e uma das que vale a pena continuar a traduzir.

Uma nota final para a tradução, feita a partir da tradução inglesa. Num momento em que já há tradutores capazes de excelentes trabalhos na passagem da língua chinesa para a portuguesa, começa a não ter sentido insistir nestes processos com mais um intermediário, dificultando a já laboriosa aproximação entre duas línguas tão diferentes.

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