No dia 15 de outubro passado, a jornalista e ativista pelos direitos das mulheres Maria Antónia Palla participou num encontro sobre Feminismo e sobre a luta contra ditaduras, realizado na Fundação José Saramago. O texto inédito que a seguir se publica foi lido por Maria Antónia Palla na sua intervenção.
Mulheres de ontem e hoje
Maria Antónia Palla
No ano de 1933, Portugal perdeu as liberdades proporcionadas pela 1ª República, fundada em 10 de Outubro de 1910.
O Regime que lhe sucedeu – e que afetou toda a população – suprimiu a liberdade de expressão e de associação e toda a atividade democrática, impedindo o progresso do país.
As mulheres portuguesas foram as mais sacrificadas, sofrendo a dupla ditadura do Estado e da Família – do pai, do irmão, do marido, até da própria mãe.
Se eram pobres, trabalhavam nos campos de sol a sol ou na pesca, consertando as redes. Em casa participavam nas lides domésticas e tomavam conta dos irmãos – que eram sempre muitos.
Muitas não iam à escola porque não existia, ficava longe demais ou a família precisava delas para outros serviços. O analfabetismo era altíssimo. Para escapar à escravatura doméstica, restava-lhes servir em casa de outros. A bem ou a mal, havia sempre alguém a mandar nelas.
Nas fábricas, quando existiam, eram os capatazes que mandavam, sem lhes concederem liberdade para irem à casa de banho ou beber água, com salários baixíssimos. A compensação era terem companheiras.
Quando regressavam a casa, esperava-as o trabalho doméstico. Solteiras ou casadas, não havia descanso. Os homens não ajudavam. Saíam para as tabernas ou para os cafés para conversar e beber vinho. Quando voltavam a casa, queriam comer, queriam sexo, batiam nas mulheres, descarregando nelas as suas frustrações.
A elas apetecia-lhes fugir. Sem instrução, reduzidas no máximo a uma terceira classe primária, iriam fazer o quê e onde? Uma grande feminista francesa do século 19, Flora Tristan, chamou-lhes “escravas de escravos”.
Acabavam por seguir os conselhos da mãe: “assujeita-te, mulher, assujeita-te”. Como as mães tinham feito e elas diriam às filhas.
O veneno para os ratos era muitas vezes o meio de libertação. Mas era também um caminho quase certo para a prisão.
A partir dos anos 60, a emigração aumentou. Em regra, eram os homens que partiam primeiro. As mulheres juntavam-se-lhes depois ou ficavam por cá, tornando-se elas o “chefe de família”. Saíram-se bem.
Nas classes mais abastadas, as raparigas eram mais instruídas, tinham outras aspirações, embora a repressão familiar pudesse ser tão grande que as levava a abandonar os estudos e a procurar libertar-se pelo casamento. O essencial era que a virgindade se preservasse. Existiam pais polícias. E maridos também.
Casando, muitas tornavam-se donas de casa e mães de família. Se persistiam em ter um emprego, aplicando o que haviam estudado, sujeitavam-se a ver os seus bens, ganhos ou herdados, geridos pelos maridos. Nada se podia fazer sem a sua autorização.
A notável jurista e feminista Elina Guimarães, a mulher que mais escreveu sobre os direitos das mulheres em Portugal, disse-me um dia: «felizmente que em Portugal as leis não se cumprem, senão nem um pão podíamos comprar sem autorização dos maridos!».
Apesar disso, o número de mulheres que saíam formadas das Universidades portuguesas aumentava consideravelmente.
Porém, era-lhes difícil encontrarem o trabalho que desejavam. Preconceitos do empregador, impedimentos impostos pelo Estado. As mulheres não podiam ser diplomatas, magistradas, cirurgiãs. As enfermeiras teriam de permanecer solteiras. Não existiam jornalistas. A carreira mais acessível era a do professorado. O melhor lugar que ocupavam numa empresa era o de secretária, a menos que fosse a proprietária. O direito de votar para todas as mulheres e de exercer cargos políticos não existia.
Havia, contudo, regras universais. Uma senhora não podia entrar sozinha num café. Como não devia andar à noite na rua sozinha. Só durante a 2ª Guerra Mundial as portuguesas ousaram não pôr meias no verão, imitando as refugiadas estrangeiras que frequentavam as esplanadas.
Os casados pela Igreja Católica estavam impedidos de se divorciar e a união de facto era mal vista. As mulheres nessa situação eram tratadas mais ou menos como concubinas. Os filhos dessa união eram considerados ilegítimos, o que veio a causar um grave problema social que só viria a ser resolvido após a Revolução de Abril de 1974.
O divórcio, porém, sempre foi possível para os casamentos civis, mas poucas portuguesas o preferiam. A ditadura manteve também o direito das crianças serem registadas nas Conservatórias do Registo Civil.
Existiam, contudo, regras sociais que todos, independentemente das suas ideias religiosas e políticas, cumpriam por hábito social. Uma mulher, em princípio, não falava em público. Tomar chá em pastelarias era aceite. Mas era totalmente impossível frequentar sozinha cafés ou cervejarias.
Em 1961 começou a guerra em Angola. Os ventos de independência sopram por outras colónias. O “Império da Índia”, como lhe chamavam os colonialistas, integra-se na União Indiana. Os jovens portugueses recusam arriscar as suas vidas em África. Em Fevereiro de 1962, em Lisboa, estudantes universitários, rapazes e raparigas, preparam-se para festejar o Dia do Estudante. Querem discutir os seus problemas, inclusive o da relação que podem ter com as raparigas.
À guerra opõem a festa. Mas o Governo proíbe a festa. E a Polícia invade a Cidade Universitária, prendendo estudantes de ambos os sexos. Muitos acabarão por ser expulsos das Universidades e Liceus, obrigando-os a suspender os seus cursos ou a partir para o estrangeiro.
São milhares os contestatários. Mas só uma única rapariga ousa tomar a palavra. Chama-se Isabel do Carmo. Mais tarde, dirigiu um grupo de luta armada, tornou-se uma famosa médica e é, ainda hoje, uma figura destacada da cultura portuguesa.
A Censura impediu a divulgação de notícias do que se passava nas faculdades. As férias grandes aproximam-se e o movimento estudantil parece ter acabado. Engano. Ressuscita com força maior em 69 e nem o assassinato de um estudante o extingue, pelo contrário. Torna-se ainda mais político. Até que naquela manhã brumosa de Abril de 1974, a Revolução sai à rua.
O 25 de Abril tem sido contado no masculino. Mas a acção militar, embora se deva a ela a queda da Ditadura, durou apenas 48 horas. A Revolução foram as mulheres que a fizeram, chegando-se à frente para exigir aquilo de que precisavam para melhorar as suas vidas.
Nas aldeias, nos arredores das vilas e cidades, exigiram a eletricidade para poder ter a luz que lhes permitiu ter outras coisas para aliviar as suas vidas, como uma arca frigorífica onde pudessem guardar os produtos frescos e comida mais saudável, ou até um secador de cabelo. Exigiram água canalizada, escolas mais acessíveis, centros de saúde, caminhos abertos para facilitar ir às feiras e falar com gente mais evoluída. Quiseram melhorar as casas, tornando-as mais higiénicas. Arranjaram tempo para aproveitar a campanha de alfabetização. A chegada da televisão abriu-lhes as portas do mundo. Aderiram à mudança. Estavam prontas para votar.
E obtiveram quase tudo o que queriam. Para isso foi fundamental a Constituição aprovada a 2 de Abril de 1976, assim como a revisão do Código Civil, que consagrou para as mulheres os direitos fundamentais. Menos um: o direito ao seu próprio corpo, com a despenalização e legalização do aborto e da contracepção.
Em 1976, calculava-se que se realizavam em Portugal 100.000 a 300.000 abortos por ano, naturalmente clandestinos e praticados em condições de graves riscos para a saúde e vida das mulheres.
Foi assim que surgiram várias organizações que se uniram numa “Campanha Nacional para o Aborto e Contracepção (CNAC). “
Apoiada por um amplo movimento de personalidades de vários quadrantes profissionais, sociais, políticos, conseguimos obter por referendo, em 2007, uma lei que consagrou a despenalização e a legislação do aborto em determinadas condições, realizado em estabelecimento de saúde, a pedido da mulher. Estavam já criadas consultas de planeamento familiar em todos os centros de saúde públicos e privados.
O cumprimento da Lei não tem sido satisfatório porque os médicos se refugiam na objeção de consciência. Satisfaz-nos, porém, o facto de desde então, não se ter registado nenhuma morte materna por motivo de aborto.
Atualmente, preocupa-nos o problema da violência doméstica – que tem aumentado muito nos últimos anos – e os maus tratos a crianças. Sem esquecermos as guerras que se desenvolvem fora do nosso país mas que nos tocam já e que podem bater-nos à porta a qualquer hora.
A civilização ocidental poderá acabar, como outras acabaram. Estamos em risco, cada um e uma de nós, especialmente os nossos filhos, os nossos netos.