Cinco livros para salvar da rentrée
Setembro está à porta e com ele chegam todos os recomeços, entre eles o editorial. Os escaparates das livrarias hão-de ser ocupados por dezenas de novos livros, o que é uma boa notícia, claro, mas é também um rápido apagamento do espaço para tantos livros que ainda há pouco chegaram às livrarias e já vão passar à prateleira. Para fechar o Verão, escolhemos uma mão-cheia de títulos a que vale a pena deitar as mãos e a leitura antes que a nova vaga se instale.
Natureza Urbana
Joana Bértholo
Relógio D’Água
É um pequeno livrinho que cabe no bolso, mas o mais recente trabalho de Joana Bértholo é um conto que guarda nas suas breves páginas inquietações suficientes para uma vida de questionamentos vários.
Natureza Urbana é um monólogo, o discurso de uma mulher que explica a alguém como foi parar ao sítio onde agora se encontra. Conheceremos esse sítio mais adiante, mas o sítio não é tão relevante como a história que se vai desenrolando na cabeça da protagonista e no seu processo de procurar a forma certa de a verbalizar. O fluxo de pensamentos é intenso, convoca luto e trauma, é uma luta constante para dar sentido às palavras que usamos diariamente e reconhecer nos seus intervalos outros sentidos, capazes de iluminarem um mundo que, até aí, era desconhecido para quem narra. Parte desse mundo, no entanto, não é acessível aos outros ou à própria e Natureza Urbana é também o registo dessa exploração, umas vezes amena, outras acontecendo à força de picareta: «Havia um obstáculo: eu desconhecia-me profundamente.» (pg.20)
No gesto de conhecer-se, a narradora enfrentar-se-á com a cidade e os seus mecanismos, dos transportes aos serviços públicos, da alimentação à relação com a natureza, sempre questionando uma vivência da política como coisa comum que parece ter-se desvanecido e que quase sempre nos faz perder o fio a uma meada que parece assentar mais na ideia de não poder ser de outra forma do que em qualquer decisão colectiva e racional. Enfrentando-se com a cidade, é o mundo e ela própria que lhe surge por diante. E a nós, leitores, também.
Welcome to Paradise
António Jorge Gonçalves
Orfeu Negro
Depois de uma sequência inicial que coloca os leitores numa longa fila, Welcome to Paradise vai confirmando que é Lisboa a sua matéria-prima, mas não deixa de permitir leituras sobre tantas outras cidades do mundo onde o turismo se tornou o eco-sistema dominante, uma espécie de cultura intensiva que exige regadio permanente e seca quase tudo à sua volta. A fila parece a que se vê diariamente na paragem inicial do eléctrico 28, transporte que vem na lista das coisas obrigatórias de todos os guias turísticos. Essa ideia do que é obrigatório ver ou fazer num lugar é uma das linhas da travessia deste livro, que regista uma Lisboa povoada de turistas, quase sempre em poses iguais às que os turistas da semana anterior fizeram e fotografaram, também iguais às que os da semana que vem hão-de fazer.
O traço de António Jorge Gonçalves é ele próprio um percurso, vai deambulando, olhando em volta, registando. As pessoas são sempre muitas coisas e as cidades não lhes ficam atrás. Há neste livro comentários óbvios à massificação do turismo, aos custos que isso tem para quem aqui vive (ou vivia), mas também há candura neste olhar que vai construindo uma narrativa livre pela cidade: os turistas entopem Alfama, mas apreciam, como quem cá vive, as conversas, as histórias, os hábitos. Ou uns apreciam e outros não, como sempre acontece. O cruzeiro “Disney” ancorado em Santa Apolónia é o paraíso para quem nele viaja e um pesadelo invisível para Lisboa e as águas do Tejo, cada vez mais contaminadas. Welcome to Paradise é crítico e irónico, mas não perde o encantamento e é assim que vai olhando em volta, procurando perceber, descobrindo quem são estas pessoas que nos entopem a cidade – esta como tantas outras – e ainda assim querem conversar connosco.
Tempo de Erros
Muhammad Chukri
Antígona
Tradução de Hugo Maia
Tempo de Erros sucede-se a Pão Seco, que a Antígona já tinha publicado, e é o segundo de três livros que compõem a autobiografia do autor marroquino Muhammad Chukri, uma voz que podemos caracterizar por uma brutal honestidade e por uma linguagem crua e sempre dedicada a trazer para a superfície do texto aquilo que vai atravessando a mente das personagens e do narrador.
Depois do conflito aberto com o pai e com diferentes tipos de poder (do paterno ao político, passando pelo colonial) que atravessa Pão Seco, aqui temos um Chukri mais maduro, apostado em continuar a sua aprendizagem da leitura e da escrita e, mais adiante, um leitor voraz e crítico que encontra nos livros um modo de pensar e desafiar o mundo, rejeitando a ideia de refúgio ou escapatória. Tempo de Erros acompanha a sua saga para entrar no sistema de ensino oficial – que empurra para um canto os pobres e os que são demasiado velhos para a escola – e, finalmente, a sua chegada a um posto de trabalho como professor. Não fugindo ao registo das adversidades e à descrição da sua capacidade de as ultrapassar, Chukri não se detém no auto-elogio ou na auto-comiseração. Na verdade, a sua escrita tem essa capacidade visceral de levar tudo à frente, fincando-se no pensamento como exercício de vida e no rigor para com a verdade do que lhe passa pela cabeça e pelo corpo, sem amenizar nada e sem nunca perder a urgência de colocar tudo por escrito. O resultado também é um retrato da Marrocos dos anos 60 e 70, mas é sobretudo um mergulho sem colete de salvação na natureza humana.
O Mangusto
Joana Mosi
A Seita
O trabalho de Joana Mosi tem surgido em obras colectivas, mas também em alguns títulos em nome próprio que têm confirmado o trabalho desta autora e a sua relevância no panorama da banda desenhada contemporânea. Com O Mangusto, Mosi assina uma narrativa de grande fôlego onde muitos dos seus recursos ganham espaço e se desenvolvem, cruzando um trabalho de desconstrução e questionamento da linguagem da banda desenhada com uma história que vai crescendo em tensão à medida que revela as suas múltiplas esquinas narrativas.
Dizer que O Mangusto é sobre isto ou aquilo seria redutor. É-o sempre, com todos os livros, mas aqui temos um trabalho cuja estrutura assenta de tal forma nas percepções individuais e no desvio – do olhar, do que se conta, do que se vê – que é mais proveitoso ir compondo uma constelação de sentidos do que fechar a leitura neste ou naquele tema. Ainda assim, o luto atravessa este livro, bem como a memória e o modo como vivemos nela, as relações familiares e a percepção que delas temos ou o conflito entre a razão e a emoção. A mulher que foi viver para a casa que fora da sua avó, partilhando esta nova fase da vida com o irmão, e a sua obsessão com um mangusto que terá sido responsável pela destruição de uma horta que era, também, um projecto pessoal e talvez uma boia de salvação, é mais do que a personagem central. Talvez seja, sobretudo, um espelho que refracta em múltiplas imagens e sentidos aquilo que vamos vivendo entre conflitos, relações, perdas e o tempo, essa categoria avassaladora (que Mosi trabalha tão bem, tirando partido de uma mise-en-pâge sempre surpreendente) que parece ordenada e que constantemente se revela absolutamente caótica, o passando invadindo o presente, o que está para acontecer a ameaçar ser o que já aconteceu, o calendário a não dar conta do turbilhão que é estar vivo.
Gargântua & Pantagruel
Rabelais
E-Primatur
Tradução de Manuel de Freitas
Gravuras de Gustave Doré
Os livros a que chamamos clássicos, e sobre os quais Italo Calvino disse serem livros que nunca acabaram de dizer o que tinham para dizer, deveriam estar sempre ao alcance dos leitores. É verdade que essa missão é cumprida pelas bibliotecas públicas, mas as livrarias nem sempre dão conta dela, sobretudo porque muitos desses títulos foram editados há demasiado tempo para que o mercado, na sua voragem pela novidade, as mantenha disponíveis. Saúda-se, por isso, o início da edição de Gargântua & Pantagruel em português, na sua versão integral, pela mão da E-Primatur.
Obra para muitas camadas de leitura, Gargântua e Pantagruel conta as aventuras dos dois gigantes homónimos, pai e filho, agora vertidas integralmente, pela primeira vez, para a língua portuguesa, num trabalho de tradução assinado por Manuel de Freitas. Originalmente publicados em pleno Renascimento, os livros onde Rabelais desenvolveu estas aventuras lêem-se como romances de pendor cavaleiresco, onde não faltam os episódios fantásticos, mas lêem-se também como crítica à instituição da Igreja, como reflexão sobre a ciência e o seu papel no mundo, como paródia, como retrato do que sempre fomos, independentemente da época. A juntar a tantas portas de entrada neste texto, as referências gastronómicas que ajudaram a dar fama à obra, e que são parte da vertente humorística, mas também de crítica social, que atravessa este livro.
As ilustrações de Gustave Doré, criadas no século XIX e muito responsáveis pela releitura, agora com imagem física associada, que se fez desta obra em pleno Romantismo, fazem desta uma edição particularmente bela.
Este primeiro volume junta os dois primeiros livros que Rabelais dedicou aos seus personagens, Gargântua e Pantagruel. Em Novembro, a E-Primatur publicará um segundo tomo, juntando os outros três livros que encerram o ciclo.