Crítica Sara Figueiredo Costa 16 Agosto 2023

Um radical exercício de liberdade

Ensinar Uma Pedra a Falar
Annie Dillard
Antígona
Tradução de Inês Dias

Originalmente publicado em 1982, este livro reúne 14 ensaios de uma escritora difícil de arrumar em secções livrescas sempre demasiado entrincheiradas. Anne Dillard tem livros de ficção e de não-ficção e, a partir desta divisão, também ela com fronteiras mais permeáveis do que às vezes queremos crer, torna-se inútil forçar classificações na prosa desta autora norte-americana. Ensinar uma Pedra a Falar é um bom exemplo dessa inutilidade, um livro onde cabem a reflexão filosófica, as ciências naturais, as memórias de infância e uma aguda percepção do tempo.

Foram vários os textos críticos que, ao longo dos anos, estabeleceram comparações entre a prosa de Annie Dillard e a de outros autores, nomeadamente Virginia Woolf. Convocar a autora de As Ondas não é despiciendo, ainda que Dillard esteja longe das temáticas e da mundividência dessa autora. É a sua perseguição intensa pelo turbilhão de pensamentos, nem sempre muito ordenados, e a descoberta de uma estrutura possível que os converta em palavras escritas que coloca Dillard como herdeira de Woolf. A comparação pára aí, nessa demanda pela mente em funcionamento constante, estendendo-se a escrita de Anne Dillard por outras veredas, povoadas pela natureza enquanto força incontrolável (e apenas parcialmente acessível) e pela reflexão sobre a existência e sobre uma ideia de divindade.

Além de Virginia Woolf, Henry David Thoreau é o outro nome que não falha nas referências à escrita de Dillard, porque ambos os autores partilham esse mergulho sem bóia nem rota na imensidão da natureza, mas talvez essa comparação seja mais apropriada para livros como Pilgrim at Tinker Creek, que dialoga frontalmente com Walden ou a Vida nos Bosques, de Thoreau. Neste Ensinar uma Pedra a Falar, Dillard não renega as suas referências, e Thoreau é certamente uma delas, mas onde o criador de Walden procura nos elementos naturais as justificações para uma outra forma de vida – que não se baseie na exploração dos seres humanos ou dos recursos naturais e no poder exercido de forma discricionária – a autora deste livro envereda por outros caminhos, mais contemplativos, mais perto de um abismo onde tempo e espaço se cruzam sem que tenhamos outras formas de os abarcar para além da linguagem, sempre insuficiente.

No texto que dá título ao livro, escreve Dillard: «Estamos aqui para testemunhar. Não há mais nada a fazer com esses materiais mudos de que não precisamos. Até o Larry ensinar a sua pedra a falar, até Deus mudar de ideias, ou até os deuses pagãos regressarem aos seus bosques no cimo dos montes, a única coisa que podemos fazer em relação a todo este universo inumano é observá-lo.» Larry é um vizinho da autora, um dos habitantes da ilha onde Dillard vive no momento em que escreve este texto, e uma das suas particularidades é a tentativa diária de ensinar uma pedra a falar. Dillard discorre sobre essa tarefa, afastando qualquer ideia de excentricidade e ampliando os seus possíveis significados: «O silêncio da Natureza é o seu único comentário, e cada partícula do mundo pertence a essa matriz muda e imutável.» Esta conclusão, apresentada logo no início do texto, expande-se em várias declinações, cumprindo um desígnio que atravessa todos os textos do livro e que é o de questionar, sempre com os sentidos atentos, nunca aguardando uma resposta que venha de um qualquer além para lá de uma fronteira imaginária. Para Dillard, essa fronteira não existe desse modo cabal como tantas vezes a imaginamos, ainda que haja fronteiras várias a separarem-nos daquilo que não percebemos – a atmosfera irrespirável para além daquela que habitamos, a capacidade de compreender o tempo para além dos relógios e dos calendários, a a improbabilidade de existirmos no mundo para lá da linguagem.  «Se não estivéssemos aqui, acontecimentos físicos como a mudança das estações perderiam até os pobres significados que lhes conseguimos dar. O espectáculo aconteceria perante uma plateia vazia, como acontece às estrelas cadentes que caem durante o dia. É por isso que dou passeios: para ficar de olho nas coisas. E foi por isso que viajei até às ilhas Galápagos.»

Essas ilhas, onde Charles Darwin desafiou velhas leis sobre a criação, são um dos lugares a que Dillard regressa nas várias viagens que povoam este livro. É nelas que dá corpo a essa observação simultaneamente científica e fantástica, racional e profundamente emocional, afirmando-a como um registo capaz de dar conta das suas inquietações perante o mundo e levando-a para outros textos, onde outros lugares assumem o mesmo papel. A escrita de Annie Dillard é uma máquina de interrogações sobre o mundo e a existência, mas as suas engrenagens evitam ruídos mecânicos ou repetições, preferindo o imprevisto e o desconforto das perguntas sem resposta. A liberdade, nestas páginas, é um exercício radical e quotidiano que não prescinde de assumir as dores, as angústias e as dúvidas que vamos carregando (e herdando, e deixando para quem se segue). É, por isso, o mais belo dos exercícios de pensamento, o mais honesto dos modos possíveis de atravessar o tempo que nos cabe no mundo.

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