O Gaspar na noite
Seng Soun Ratanavanh
Orfeu Negro
Tradução de Joana Cabral
O medo do escuro conta-se de muitas formas. Quando se usa a expressão irracional ou incontrolável normalmente tal significa que é difícil encontrar um discurso que relate esse volume de sensações, emoções e pensamentos de forma lógica, causal, referencial. O poder da narrativa emerge então como caminho. O onírico, o absurdo, o fantástico, o terror, todos têm lugar na ficção. Todos são imagens para algo que a literalidade não comporta na totalidade, cuja dimensão nem sempre consegue representar fielmente.
No álbum ilustrado O Gaspar na noite, as páginas iniciais destinam-se justamente a descrever o contexto em que o menino tem medo. Com subtileza e acutilância, o narrador partilha uma experiência que muitas crianças reconhecem: as sombras, os sons, o pensamento veloz em associações, as memórias de situações angustiantes a sobreporem-se a memórias de conforto e consolo. Nada disto é novo. Porém, a disposição do discurso, que tem início com a leitura e a ausência de sono, vai navegando com sensibilidade pelos vários elementos que provocam o medo. A escolha de palavras e expressões do quotidiano e a simplicidade das construções sintáticas estabelecem laços de empatia e confiança. A ilustração, profusa em cores, padrões e contrastes, destaca como o espaço de segurança e evasão de Gaspar se converte no espaço do medo. Interessante é reconhecer os brinquedos da primeira página a ganharem vida mais à frente.
Estamos prontos para aceitar um pacto narrativo ficcional que nos leva a acompanhar Gaspar numa aventura transformadora. O menino vai ter a ajuda de vários animais que, com mais ou menos entusiasmo, com maior ou menor delicadeza, ou com uma sinceridade desconcertante, vão com ele explorando os lugares da casa, agora apresentados de acordo com a apropriação que cada animal faz do espaço.
O equívoco mais interessante reside na motivação para esta aventura: Gaspar precisa de um amigo que o ajude a superar o medo, que acabe com a sua solidão. Logo surge um ratinho que se oferece para ir com o menino em busca de um amigo. Ou seja, o primeiro ato de amizade consiste em ajudar o amigo. É o que faz o Ratinho desde o princípio sem que nenhum dos dois tenha consciência de que já estão a ser amigos.
Há neste álbum uma ingenuidade que o torna subtil, tanto quanto muito próximo. O equilíbrio de todas as fases da progressão da ação também contribui para o ritmo e coesão do álbum. A ilustração enfatiza a dualidade entre o espaço doméstico que Gaspar reconhece e a sua transformação num espaço de fantasia, valorizando o texto com uma imagética rica em expressividade e detalhes que o complementam.