A minha mãe é um bicho
Victor Le Foll
Jeanne Sterkers
Orfeu Negro
Logo pela tipografia do título se começa a desvendar a enumeração: mãe bicho merece destaque na afirmação e isso acrescenta uma camada simbólica à previsão.
A ilustração, por seu turno, apresenta uma composição de elementos animais num único corpo, recuperando arquétipos. Não fora pelo traje contemporâneo (uma camisola com losangos e umas calças) e tudo poderia conduzir o leitor para uma narrativa tradicional, mágica ou folclórica. Porém, a figura com quem tomamos contacto será aquela que reaparecerá no final, fechando a narrativa. O pormenor visual que dá coesão ao álbum é justamente o padrão dos losangos que se repetirá nas guardas e no miolo. Essa repetição é paradigmática no jogo entre a metáfora e o seu referente.
Adentrando-nos na leitura descobrimos uma mãe que tem o poder de se metamorfosear em determinados animais, para ser veloz, engenhosa, assustadora, forte.
Quando já se elencaram vários atributos laudatórios, eis que a criança os completa com outros que definem rotinas, prazeres e comportamentos bem mais comezinhos como a rabugice se acordada de um sono incontornável, o relaxante banho de imersão ou o canto pouco conseguido enquanto realiza tarefas domésticas.
A mãe continua a ter o superpoder da metamorfose mas este não se reduz à necessidade e desejo de cuidadora. É mesmo nesta condição que a mãe também repete avisos menos agradáveis aos ouvidos do rebento.
Não fora por esta descrição menos dirigida ao sucesso da figura da mãe e o presente álbum seria, do ponto de vista da intenção e do texto, um semi plágio do álbum A minha mãe de Anthony Browne. Browne não centra a comparação no universo animal e a identificação da personagem que a mãe encarna pode ser feita pelo texto, pela ilustração ou pelo diálogo entre ambos. Ainda, o texto do autor britânico tem uma cadência poética e uma economia distintas deste, que é maior em tamanho e mais descritivo.
A minha mãe é um bicho não traz uma ideia ou uma abordagem nova à experiência da maternidade vista sob a perspectiva do filho. Continua a garantir que a figura materna seja vista como uma espécie de heroína sempre capaz. Conforta e consola. No entanto, o que acontece aos leitores que sistematicamente não encontram as suas mães entre heroínas e animais ferozes? Aqui, pelo menos, temos uma mãe que se cansa e adormece e que resmunga, mesmo que por pouco tempo. Também é necessário desconstruir por aí, pela aceitação da fragilidade como algo que não desestrutura o afeto, a dedicação e a atenção.