Os dias de José Saramago em Lanzarote contados por Pilar del Río
Neste mês de Setembro, chega às livrarias portuguesas e brasileiras o livro A Intuição da Ilha, de Pilar del Río. Em breves crónicas, a jornalista e presidenta da Fundação José Saramago trata de narrar episódios da vida de José Saramago desde o momento em que o autor de A Jangada de Pedra se mudou para Lanzarote, em 1993, até a sua morte, em 2020. A Blimunda publica em primeira mão dois capítulos do livro editado em Portugal pela Porto Editora e no Brasil pela Companhia das Letras.
A Casa
José Saramago entrou em sua casa com ansiedade. Durante vários dias conviveu com os trabalhadores que tinham levantado muros, aberto portas e janelas, trazido água por misteriosas canalizações e a luz por cabos invisíveis que nem sempre funcionavam. Cada coisa foi ocupando o seu lugar, o pátio era pátio, a galeria um lugar de comunicação e não um armazém de ferramentas estranhas, a cozinha era o centro da casa em vez de ser a oficina onde um carpinteiro ajustava
portas, lixando-as no meio de nuvens de pó e aparas que cheiravam a madeira curada. Antes destes trabalhadores partirem, José Saramago convocou-os para um almoço de despedida no jardim, batatas arrugás, talvez cabrito no forno, uns grãos com sabores milenares, talvez queijos da ilha com molho picón ou o menu do restaurante de Tías servido em caldeirões alegres e merecidos. Foi uma despedida bonita, um brinde com os trabalhadores castigados pela crise económica que naquele momento assolava a ilha e que fez com que muitas pessoas se aproximassem da obra oferecendo-se para engrossar a equipa de trabalho. Algumas ficaram, por isso foi tão rápida a construção da primeira casa a que José Saramago pôde chamar sua. É verdade que a casa era simples, o que se tinha pedido era uma sala para convívio, dois espaços de trabalho, os quartos
necessários e uma cozinha-sala de refeições que fosse lugar de encontros, sem nunca separar o cozinhar da necessidade e do prazer de se alimentar. Havia também a promessa de um jardim, um pedregal antigo onde chegaram caminhões de terra fértil capaz de acolher as sementes que mais tarde dariam sombra a esse lugar de Tías que já tinha nome, e nome em português: A Casa.
José Saramago sentia-se bem neste espaço que, sendo novo, se afigurava povoado de recordações, porque cada objecto que se colocava trazia a sua própria memória. O escritor viajava com pouca bagagem, para Lanzarote trouxe os seus livros, o computador, algumas peças de barro, dois relógios, várias pinturas de artistas portugueses, uma colecção de canetas e uns cavalos de
madeira oferecidos por quem sabia que em criança tinha sofrido com a pena de não poder montar aquele de que o seu tio cuidava, proibido para ele. O resto dos utensílios da casa foram chegando cada um com o seu motivo, todos estranhos à lógica: era uma amiga que desmontava a sua casa e não sabia o que fazer com o que tinha sido a sua vida, era outro amigo que mudava de país, eram umas estantes sem arrumação mas com experiência, eram uns aparadores descartados há muito tempo pela mãe de outra amiga, Dona Otília, era um quadro tão grande que não encontrava comprador na galeria Lapizlázuli e para o qual se construiria uma parede. Em suma, sempre com coisas próximas e sentimentais foi-se mobilando a casa de Tías que então, quando outras ainda não tinham sido construídas em redor, ficava no final da povoação, na parte alta de um cerro, com vista para o mar e para Fuerteventura. O mar, o céu e Fuerteventura foram durante anos os primeiros olhares do dia, o desejo de uma boa jornada, se possível em companhia.
A Casa é um complexo com duas vivendas. Os cunhados de José Saramago que o convidaram a visitar a ilha vivem ali, a casa construiu-se numa parcela que tinham e que, perante o inesperado pedido do escritor de se mudar para Lanzarote, decidiram partilhar, planeando dois lugares habitáveis, de dimensões humanas, independentes entre si, mas com uma única porta de entrada e um único jardim. Com o tempo, foi necessário dar espaço aos livros e junto à casa construiu-se outro edifício, a biblioteca que acolheria as horas de trabalho de José Saramago e a possibilidade de, quando havia momentos de descanso, sentado num dos cadeirões de couro negro do centro da sala, olhar à sua volta e distinguir um a um os livros que o tinham acompanhado e os outros que se somaram e que continham e contêm a vida dos seus autores. Na biblioteca, José Saramago era feliz. Ouvia música, cruzava as mãos, fechava os olhos, o universo aproximava-se e envolvia-o com a pulsação humana. Os livros de José Saramago cresciam nessas horas que passava na biblioteca, definitivamente acompanhado por páginas de papel que, sabia-o, continham espírito e que o dotavam da força necessária para voltar a começar.
A Casa fica em Tías, Lanzarote, e guarda dezoito anos da vida de José Saramago.
Escrever em Lanzarote
O escritor leva a sua máquina de escrever, papel, um lápis para corrigir, algumas ideias e com isso tem tudo, apenas falta que se sente e se ponha a trabalhar, poderiam dizer os que das coisas que bulem no interior dos seres humanos saibam pouco. Não é fácil começar uma nova vida e, por sua vez, um novo livro. O escritor sobe para o avião e vê como a sua terra se afasta. É certo que outra terra espera, que quem voa é ele e leva promessas de regressos, mas hoje, esta manhã, afasta-se das suas paisagens habituais, de rostos cotidianos e do idioma que o formou e no qual se move e respira. O homem que nasceu na aldeia de Azinhaga hoje vai a caminho de uma ilha, escolhida, sem dúvida, e também de um universo que não figurava em nenhum registo pessoal, embora a ilha pudesse ser uma intuição na sua vida.
Certo tremor acompanhou o escritor nessa viagem de finais de 1992, de complexo itinerário, Lisboa, Sevilha, para o encerramento da Expo 92, Tenerife, Lanzarote, talvez atenuado ao ver o Teide desde a janela do avião, ainda mais dissipado ao aterrar em Lanzarote e ao sentir a calma do lugar, o vento único da ilha, a cor da terra, o mar como um caminho. Então, a certeza de ter tomado a decisão certa sobrepôs-se à nostalgia e à quase imperceptível irritação que o acompanhava desde a censura governamental, pelo que, com voz alta e firme, anunciou aos que o esperavam no aeroporto: «Vamos ver A Casa», como se para pronunciar essas palavras se tivesse preparado durante setenta anos.
Acompanhem o escritor, se quiserem. Tenham cuidado, durante umas semanas isto ainda é uma obra, haverá cabos e máquinas por todo o lado até ao princípio do ano. Mas a divisão em frente, do lado esquerdo quando se entra em casa, já está terminada. É o gabinete de trabalho de José Saramago, aí está a sua janela, ao fundo veem-se o mar e o céu. Convém recordar ao escritor, para que não tenha nostalgia, que é o mesmo céu que via em Lisboa, limpo, azul, disponível. Aqui, neste espaço recém acabado, produzir-se-á o milagre contínuo da criação, os livros que esperam nascerão nesta paisagem e algo já se intui nesta nudez que convida e emociona.
Carpinteiros do norte da ilha construíram estantes de madeira de pinho, a única disponível, que colocariam de parede a parede. Uma mesa grande para acomodar o computador, livros, dicionários, folhas desorganizadas, correspondência, flores, fotografias, o caos estimulante e necessário para escrever. Depois, já com a casa mobilada, virá a normalidade, o escritor pôr-se-á a escrever, tudo estará objectivamente preparado. É então que as turbulências da criação se fazem visíveis. Ensaio sobre a Cegueira era o livro que trazia na bagagem, talvez a obra que mais tempo o ocupou, três anos e três meses desde que a ideia lhe apareceu enquanto almoçava num restaurante da Madragoa, em Lisboa. «E se todos ficássemos cegos?», foi a pergunta que se fez. Precisou chegar a Lanzarote para lhe dar resposta.