Heranças, sintomas, novelos
O Ar Que Me Falta
Luiz Schwarcz
Companhia das Letras
À medida que a saúde mental conquista um lugar naquilo a que chamamos espaço público, os livros (e sites, contas em redes sociais, vídeos de trinta segundos para não queimarmos o cérebro com a reflexão prolongada…) a que há uns anos chamaríamos de auto-ajuda, e que agora terão alguma designação moderna que galvanizará a experiência partilhada ou a coragem da exposição, também reclamam o seu território. São demasiadas prateleiras e lugares da internet vendendo a cura fácil ou, pior, a ideia de que o que é preciso é animarmo-nos, vermos o lado bom da vida, sairmos de casa e apreciarmos a natureza. É neste momento que se desconfia que talvez a saúde mental não tenha, ainda, conquistado o seu lugar no espaço público, mas que os vendedores de banha da cobra já aí se instalaram há muito. Neste cenário florido que oferece a paz interior, é de saudar a chegada às livrarias de um exemplar que não promete curas, métodos ou saídas e que, mesmo falando de depressão, estará longe, muito longe, da ilusão da auto-ajuda. Se os livreiros o arrumarem ali nas imediações da literatura, paredes meias com as ciências humanas, a biografia, as memórias, estará bem entregue e protegido dos vendilhões.
Luiz Schwarcz será conhecido dos leitores mais atentos à literatura e à edição brasileira, já que o seu nome está indissociavelmente ligado ao da editora Companhia das Letras, que fundou, na década de 80, com Lilia Moritz Schwarcz. O Ar Que Me Falta também refere essa fundação, bem com as raízes que trazia fincadas na gráfica do avô, nos livros da juventude e no projecto editorial anterior, a Editora Brasiliense, mas é de outras raízes e de vários caminhos que se faz o texto deste livro.
No início, a falta de ar. No cimo de uma montanha coberta de neve, num momento de pausa em família, ensinando as netas a esquiar, Luiz Schwarcz sente o ar incapaz de chegar aos pulmões. Não há motivo, pelo menos não um motivo que parecesse aceitável às pessoas que recomendam aos deprimidos que se distraiam um bocadinho para lhes passar a maleita. E é a partir desta falha de compreensão – que tantas vezes é falha também para o próprio, incapaz de aceitar que um sintoma se está a instalar, que a sua origem é psicossomática, que não há nenhum motivo “físico” para isso acontecer – que começa a narrativa. Nela, Schwarcz percorre o labirinto da sua depressão, localizando origens, registando consultas, terapias, análise, medicação, identificando momentos essenciais, mas onde o texto se revela é na pesquisa sobre si próprio, a sua história emocional e a herança familiar. A dada altura, escreve: «Quem tem depressão vive apenas em função do momento. O julgamento é sempre absoluto e no presente. Estamos deprimidos ou não? Fora das sessões de psicanálise ou terapia, fugimos das lembranças ou interpretações. Ao tentar rememorar a pré-história da minha doença, penso agora na minha constante angústia infantil. Era um tempo permeado de medo e silêncio. No entanto, esses sentimentos vinham a seco, pareciam naturais, como se não houvesse motivo que os justificasse ou acompanhasse. Sem ter com quem me comparar, eu provavelmente achava que ter medo era parte intrínseca da existência, que todos sentiam o mesmo que eu.» (pg.38) Nesta análise sobre os primeiros sintomas de um sentir que haveria de instalar-se e dominá-lo, antes que pudesse tornar-se manejável, surgem também as linhas narrativas que o ligam ao pai e à mãe, primeiro, e a outros familiares, depois. Ou talvez ao mesmo tempo, porque se há coisa que se esbate num processo analítico como este é essa noção arrumada do tempo, um antes e o depois em sequência contínua, que nos iludem de modo geral, levando-nos a acreditar, ou pelo menos a desejar, numa ordem que provavelmente não existe fora do calendário.
O antes, para Luiz Schwarcz, será talvez a história do seu avô paterno, preso com o filho (pai do narrador) num comboio com destino ao campo de concentração nazi de Bergen-Belsen, e o momento em que, aproveitando um abrandamento inesperado, empurra esse filho para fora da carruagem e diz-lhe para fugir. A culpa do sobrevivente permeará a existência do pai de Schwarcz de um modo que nos é inacessível, com excepção da parte dessa culpa que sobreviveu em quem agora conta a sua história. Mas há outros antes, como há sempre e talvez de modo infinito: a mãe que, aos três anos, teve de decorar um nome falso para escapar da Europa dominada pelos nazis e chegar ao Brasil, os que não sobreviveram ao caminho, os que antes destes terão fugido, ou se terão escondido, e que além disso tudo tiveram igualmente uma vida, uma história carregada de outros passados. É toda essa linha temporal e disruptiva que se abre nas palavras de Luiz Schwarcz, por um lado esclarecendo histórias que ganharam eco em si próprio, por outro confirmando que não temos, nunca teremos, como conhecer as histórias todas, nem avaliar o modo como nos definiram aquelas que não conheceremos nunca.
Com o avançar da narrativa, sempre na primeira pessoa e sem floreados ou disfarces, percebe-se o esforço de assegurar o equilíbrio necessário entre não saber certas coisas e saber que não se sabe, mas também a confirmação de que é preciso encontrar a ferida e escavar: «Com essa longa maturação, o tempo e o silêncio transformam a memória, erguem narrativas sobre a narrativa original, regam os traumas, que quanto mais guardados mais fortes se tornam.» (pg.56-57) O Ar Que Me Falta não se assume como lamento, muito menos como receita para lidar com a depressão. O gesto que aqui predomina é o da investigação sobre si próprio, assumindo os ângulos de onde não se consegue deixar de olhar e a vontade de os contrariar. Não há discursos de superação ou incentivos à cura, apenas honestidade sobre o que é doloroso, arrasador e potencialmente perigoso, aliada ao movimento constante para descobrir. Fosse este um livro de auto-ajuda e estaria aí, na curiosidade e na vontade de descoberta, a única possibilidade de salvação, mas aqui não há palavras salvíficas: há a vida a mostrar-se novelo por entre outras vidas e a vontade, apesar de tudo, de ir puxando alguns fios, confirmando que esse é o gesto partilhável e aquele que nos permite, finalmente (e ainda que por momentos), pousar a cabeça sem medo.