Descobrir Carolina de Jesus
Na crónica de uma leitura, Julián Fuks regista a sua própria descoberta do imenso valor literário de Carolina de Jesus.
O escritor brasileiro Julián Fuks lançou-se na leitura da obra de Carolina de Jesus depois de muito tempo a acompanhar discussões intermináveis sobre o seu valor. Como conta na crónica que publicou no UOL, temia «por uma insinceridade às vezes inevitável, pela boa intenção disfarçada, temia que se exagerassem suas qualidades para compensá-la por suas dores, por sua miséria.» Carolina de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, e viveu grande parte da sua vida na favela do Canindé, em São Paulo. Em 1960, publica o livro Quarto de Despejo, um registo diarístico da sua vida e da pobreza que era o quotidiano dos que partilhavam a comunidade da favela. Mulher, negra, pobre, a autora dedicou-se a vários trabalhos para sobreviver e assegurar o sustento dos seus filhos e a literatura foi uma actividade paralela, cultivada com a disciplina de quem não dispõe de muito tempo e também com a entrega que a urgência da escrita exigia. Julián Fuks conhecia toda a história, bem como os debates paralelos sobre a edição da obra, o reconhecimento tardio, a crítica literária, mas faltava-lhe conhecer a obra propriamente dita. É esse processo que descreve na crónica, revelando o impacto da descoberta de uma enorme escritora: «Ela própria faz de si, em sua obra, uma personagem tão insólita quanto convincente. Não há contradição sensível, não há incompatibilidade em sua dupla condição de catadora e de artista. Carolina não é anedoticamente uma miserável até que se faz escritora, e não vive a dor para escrevê-la. Experimenta a miséria dia após dia, inescapavelmente, e ainda assim, ou só assim, é capaz de descrevê-la nos tons mais nítidos, com extrema clarividência. Não é uma mulher dividida entre dois destinos tão díspares: é uma só mulher que os encarna em seu corpo negro, é um só corpo de mulher sobre o qual despencam os sofrimentos do mundo.»