Castelao e o álbum Nós, da Galiza para o mundo
Figura central da cultura e da política galegas do século XX, Castelao foi também um artista de muitas expressões. Nós, o seu mais aclamado álbum de estampas, publicou-se há 90 anos e continua a ser um marco na história da Galiza, abrindo o seu olhar para o mundo.
Publicado pela primeira vez em 1931, Nós é um álbum de estampas que começou por ser apresentado sob a forma de exposição, em 1920, tendo sido editado na sequência da aclamação que os sectores do nacionalismo galego lhe devotaram. Nascido em Rianxo, em 1886, Alfonso Daniel Rodríguez Castelao trabalhou na concepção deste livro entre os anos de 1916 e 1918, e o resultado foram as 49 estampas e um auto-retrato que compõem a obra, resultantes da impressão de desenhos originalmente elaborados com recurso ao carvão e à grafite, com alguns apontamentos de tinta. As imagens retratam situações vividas por uma franja social que caracterizava a Galiza do início do século passado, maioritariamente rural, mais dependente dos donos das terras do que da terra propriamente dita e sujeita aos desmandos que os desequilíbrios sociais impunham aos que não tinham como contorná-los. A pobreza, a emigração como recurso frequente, a pouca instrução e a relação desfavorável de poder com os detentores da terra e com as estruturas sociais que neles se apoiavam são temas que atravessam o álbum, acompanhados por referências à questão da identidade galega.
A fortuna que a exibição das estampas do álbum Nós alcançou nas cidades e vilas galegas por onde passou deu a Castelao a visibilidade necessária para poder publicar os seus trabalhos, iniciando aquilo que viria a ser um percurso ímpar na cultura galega. Percorrendo as obras literárias, os artigos académicos, as conferências e a obra plástica de Castelao percebe-se que Nós, ainda que recuado no tempo relativamente à época de maior produção do autor (anos 30), contém já as linhas de força nas quais assentaria o seu trabalho, nomeadamente a temática da cultura galega e da sua necessidade de afirmação face ao domínio castelhano, o olhar pormenorizado e crítico perante as tipologias sociais que poderiam configurar uma identidade galega e o projecto de colocar a produção cultural galega a par das produções culturais dos países europeus mais próximos. Se autores anteriores (e até alguns contemporâneos) a Castelao se dedicaram a explorar a vertente etnográfica e regionalista, é muito claro, desde a adesão de Castelao às Irmandades da Fala e da assunção da direcção artística da revista Nós (partilhando o nome com este álbum), que essa não é a sua preocupação enquanto artista. Conhecedor profundo da cultura galega nas suas múltiplas vertentes, Castelao não a assume enquanto quadro pitoresco, devedor de uma ruralidade balizada por gestos que, de tão plasmados numa mesma rotina, acabavam por supor que os seus protagonistas nunca dela poderiam sair, mas antes como espaço de criatividade, de construção social e de experimentação, à semelhança de todas as outras manifestações culturais. Digamos que o reconhecer das especificidades da cultura galega perante as culturas vizinhas nunca foi assumido como elemento isolador, mas antes como elemento identitário, tanto mais rico quanto conseguisse dialogar com as manifestações culturais de outras geografias. Essa premissa, aliada a um ideário ético e político onde se destacavam as ideias de justiça social, igualdade de direitos e direito à auto-determinação, fizeram de Castelao um dos porta-vozes do nacionalismo galego do século XX, mas igualmente uma figura de relevo no panorama ibérico relativamente à defesa de determinados ideais políticos, sobretudo no contexto que rodeou a Guerra Civil de Espanha, pelo que o galeguismo de Castelao não pode ser entendido sem se ter em conta esse ideário mais vasto e partilhado, sem que a questão galega fosse um entrave, com outros nomes do debate político e de ideias que tomou conta do território espanhol nas primeiras décadas do século passado (caso de José Antonio Aguirre, do País Basco, ou Francesc Macià, da Catalunha).
O humor como denúncia
A criação de Nós não é alheia ao contexto político e cultural do galeguismo em que Castelao firmou o seu percurso. Todavia, como acontece com todas as grandes criações culturais, a universalidade deste livro supera a sua realização. A questão da identidade galega e da autodeterminação da Galiza são tópicos relevantes, mas o que é transversal ao livro é uma visão mais ampla da existência e das escolhas possíveis em torno dela, com a justiça social e a denúncia da sua urgência como elementos definidores.
Esta é uma obra que reflecte um ideário de justiça social, muitas vezes acompanhando a visão marxista da economia, ainda que não se fechando nessa doutrina. E é também um trabalho que dialoga profundamente com a tradição plural do cartoon, do comentário político-humorístico praticado em muitos jornais da época e com as leituras antropológicas entretanto consolidadas sobre as realidades históricas e tradicionais da Galiza e das regiões adjacentes. Nas estampas criadas por Castelao cruzam-se o comentário humorístico com o retrato sócio-cultural, muitas vezes auxiliados pela criação de figuras-tipo que, apesar da sua natureza, nunca são planas e limitadas àquilo que delas se espera. Por vezes, apenas uma destas abordagens ocupa o espaço da cena, mas o que se constata com mais frequência é o recurso a diferentes modos discursivos em cada estampa, o que confere ao álbum Nós uma parte da riqueza que se lhe reconhece. Na estampa nº12, por exemplo, convivem a representação das figuras-tipo associadas aos labregos (com elementos de vestuário que se repetiam em muitas representações da época, como os gorros e os lenços), o retrato sócio-cultural, representando um momento regular da vida dos camponeses e o comentário mordaz ao pagamento dos impostos exigidos pelos donos das terras, compondo um desfile que Castelao associa, para destacar a ironia, ao desfile que teria sido protagonizado pelos pastores de Belém na altura do nascimento de Jesus.
Teria sido fácil para Castelao, familiarizado que estava com as caricaturas que circulavam nos jornais espanhóis e com o vasto património etnográfico galego, isolar em cada estampa um único sentido e ainda assim realizar um álbum que representasse a sociedade galega de inícios do século XX. Mas Castelao não estava particularmente interessado no isolamento da cultura galega a partir de um discurso que suscitasse a compaixão ou o olhar pitoresco (e sobre isto vale a pena ler os capítulos iniciais de Sempre en Galiza, obra fundamental deste autor), estando mais motivado para criar uma obra onde a leitura complexa da sociedade galega não fosse devorada pelo maniqueísmo.
«Que lástima de bois!»
O ideário de Castelao começa a afirmar-se de modo claro logo no prólogo, com a primeira estampa desta colecção. Nela vemos uma figura cujas vestes e respectiva composição remetem para a imagem de uma Nossa Senhora, sentido reforçado pela estrela que a encima e pela criança que ergue como quem acaba de a fazer nascer. Só que onde se esperariam as feições e o corpo de Nossa Senhora, popularmente identificada como Mãe primordial (e isto independentemente, ou a juzante, da simbólica exclusivamente cristã), o que vemos é um esqueleto, imagem irrevogavelmente associada à morte. Este prólogo reflecte uma retórica de que Castelao tirou frequente partido e que vive de associar, numa mesma expressão, a denúncia social e a esperança na resolução do que a provoca. De certo modo, é também à ironia que esta imagem vai buscar o seu mecanismo, fazendo coincidir, num mesmo momento, uma ideia e o seu contrário. O mesmo mecanismo, mas agora recorrendo ao contraste entre a imagem e a sua legenda, estrutura a penúltima estampa, onde vemos uma figura demoníaca observando o mundo à lupa quando a legenda remete para Deus e o seu gesto de criação.
A partir da terceira estampa torna-se claro que Nós não é apenas uma colecção de imagens onde se repartem as intenções artísticas e as políticas, mas antes, e talvez antes de tudo, uma obra onde se joga a expressividade dos desenhos e a sua relação intrínseca com as legendas, uma relação que é de total complementaridade e nunca de mera ilustração. Apoiado num cajado, envergando o tradicional capote camponês e o chapéu de abas, o cigarro amachucado atrás da orelha e a mão apertando o queixo, um homem olha para um cartaz que anuncia uma tourada em Santiago de Compostela. A sua fisionomia transparece a incompreensão perante o que vê, incompreensão essa que resume todo um contexto ideológico a partir do momento em que a legenda se junta à leitura. Na legenda lê-se «Que lástima de bois!», e esta exclamação, aliada à expressão do homem e ao contraste da sua figura pesada sob o capote com a elegância estilizada do toureiro que volteia no cartaz, encerra sentidos mais complexos do que o simples desprezo de uma cultura, a galega, por uma outra, a espanhola, que a domina. É o lastro de uma realidade sócio-económica marcada pela dependência da criação de gado bovino e a sua incapacidade de aceitar que se recorra aos bois como forma de diversão e espectáculo (sobre a Galiza e a sua relação com as vacas, há outros textos de Castelao muito eloquentes, bem como o mais recente, de Manuel Rivas, Un Millón de Vacas). Claro que esta incompreensão se estende até abarcar o desprezo pela presença da cultura espanhola na Galiza, mas esse desprezo deve-se sobretudo ao seu papel de domínio.
Universalismo galego
É na relação intrínseca entre imagens e legendas, por um lado, e no recurso às diferentes estratégias de criação narrativa ou cénica, por outro, que o álbum Nós deixa respirar as suas qualidades mais vibrantes. Influenciado pelo património gráfico e etnográfico galego, mas igualmente pela leitura de jornais onde as caricaturas e as ilustrações de autores de outras latitudes surgiam com regularidade e pela devoção assumida dos trabalhos da Simplicissimus, Castelao construiu uma voz única no panorama cultural galego do século passado, voz essa que se destacou no plano da criação gráfico-narrativa. Nós é o exemplo mais relevante, mas livros como Cousas da Vida, Atila en Galicia ou Galicia Martir merecem leitura igualmente atenta, tanto pela riqueza imagética como pela criatividade retórica.
Um breve percurso pelas estampas que compõem este álbum confirma a presença indubitável do tema do galeguismo e das reivindicações que se lhe associaram no início do século XX, ainda que essa confirmação fosse desnecessária, tal é o carisma de que esta obra sempre gozou nos vários sectores do nacionalismo galego e ao longo dos momentos mais marcantes do século XX galego, nomeadamente a discussão do estatuto de autonomia, o referendo que aprovou essa mesma autonomia ou a constituição de um Governo republicano no exílio após o eclodir da Guerra Civil. No entanto, uma leitura mais focada nos elementos que compõem a obra e no modo como estes se inter-relacionam, e não exclusivamente nos elementos que o galeguismo tornou conhecidos e icónicos, permite considerar que no álbum Nós se constata a primazia de uma visão mais universalista do que nacionalista, e que essa visão se socorre de um contexto que é, claramente, galego, mas assumindo exigências e denúncias que não se esgotam na realidade da Galiza do século XX.
A denúncia das condições de trabalho e vida dos trabalhadores rurais e do modo impune como os donos das terras, muitas vezes articulando-se com os pequenos poderes locais, exploravam esses trabalhadores, a ironia perante um sistema de justiça que acudia apenas aos ricos, deixando de fora parte considerável da população ou a constatação, muitas vezes partilhada com o leitor através dos comentários humorísticos, de situações onde o desequilíbrio de direitos é notório colocam as linhas temáticas de Nós num arco mais abrangente do que o da questão galega. E se foram sobretudo os elementos exteriores à obra que fecharam Nós no tema do galeguismo, posso concluir dizendo que, não só os elementos intrínsecos permitem uma leitura um pouco mais vasta e aberta, como outros elementos externos podem igualmente sustentar esta leitura, nomeadamente as posições de Castelao relativamente à política Ibérica e Europeia do seu tempo, tantas vezes coincidentes com o ideário que se reflecte em várias das estampas de Nós. E se dúvidas houver, atente-se na estampa final e confirme-se que é o mundo, e não a Galiza, que o Diabo espreita pela lupa.