Estamos ou somos reféns das redes?
Gosto, logo existo, um livro para todos e sobre quase todos
Redes sociais, fake news e o poder dos gigantes da internet são assuntos que têm vindo a ganhar lugar de destaque em canais de informação e na arte.
A apreensão de muitos relativamente à desinformação, à manipulação da opinião pública e ao crescimento evidente dos extremismos ideológicos vem-se manifestando cada vez com mais intensidade e frequência.
Três exemplos recentes, todos de 2020, são o documentário da Netflix realizado por Jeff Orlowski, “O Dilema das Redes Sociais”, “Fake”, a peça que Miguel Fragata e Inês Barahona levaram ao palco do Teatro D. Maria e o livro O Inimigo conhece o sistema, da jornalista espanhola Marta Peirano, editado pela Kalandraka.
Os três têm em comum a denúncia de teias diversas de desinformação e manipulação dos utilizadores das redes, orquestradas por complexos sistemas de programação e profundamente conhecedoras do funcionamento emocional dos indivíduos. A necessidade de validar opinião, bem como a de ser reconhecido e aceite são os principais filões a explorar.
A esta realidade junta-se uma preocupação evidente com o uso que, em particular, crianças e jovens fazem das plataformas digitais que têm ao dispor.
Como fazer, então, para que todos e em especial as gerações mais novas se armem com ferramentas que as protejam de um mundo desconhecido, profundamente viciante e viciado?
Como contrariar a fragmentação da opinião, a imediatez do violento estímulo visual e sonoro, a descarga química que consola e traz euforia?
A jornalista Isabel Meira, co-autora do documentário “Verdade ou Consequência”, sobre o tema da pós-verdade que foi transmitido no canal público da televisão portuguesa, levou a cabo a missão de escrever um livro informativo para que os mais novos acedessem e questionassem este universo paralelo.
Em cinco capítulos, apresenta factos e levanta questões sobre a utilização da internet em termos estatísticos, a curiosidade e a necessidade de comunicar, a história (resumida) do jornalismo, a privacidade, a liberdade e a dependência, a desinformação ou pós-verdade.
Neste conjunto bem organizado de vetores destacam-se factos alarmantes que visam uma consciencialização de comportamentos individuais assentes maioritariamente em impulsos emocionais. A retórica do livro implica o leitor porque o questiona diretamente, propõe-lhe que pense sobre o que sente e o que faz e assim não lhe permite distanciar-se. Mesmo que se resista aqui e ali é muito difícil que alguém que use as redes sociais e pesquise no Google não se reveja nesta ou naquela situação.
Nesse sentido o livro funciona quase como uma vacina já que leva o leitor a provar do próprio veneno, isto é, confronta-o com a sua ignorância, com a sua inconsciência ou até com as ilusões sobre a sua auto-imagem.
“Acho que ler este livro pode ajudar os leitores a terem uma visão sobre si próprios e sobre comportamentos que tenham online. Tanto ao nível de comentários que fazem a outras pessoas como ao tempo que passam a olhar para ecrãs.”, partilha Simão (17 anos) com a Blimunda. E acrescenta que se identificou com alguns comportamentos descritos no volume: “Quando o livro revelava alguns dados eu pensava que fazia exatamente aquilo que estava a ser relatado. Isso preocupou-me e levou-me também a mudar alguns comportamentos. No livro fala-se da vontade que muitas vezes temos de ir logo olhar para o telemóvel assim que ele apita; acho que isso me acontece algumas vezes ao dia. Também me consigo rever na existência de momentos em que a internet nos leva a ter vários sentimentos como impaciência, dificuldade em estar sozinho, etc… Acho que o livro me ajudou a perceber que muitas vezes estou na internet apenas a navegar sem rumo. Aliás, desde que li o livro desinstalei algumas aplicações que me levavam a fazer isso mesmo. Ir para uma rede social apenas fazer scroll é uma coisa tão fácil e tão rápida de fazermos acontecer que se torna muito tentador e quase impossível de resistir.”
Uma forte sensação de falta de ar
O livro tem efetivamente um efeito de espelho sobre os comportamentos digitais do seu leitor. Um dos momentos mais claros em que o faz é precisamente quando enuncia, com designação técnica, alguns comportamentos perturbadores, para o próprio utilizador e para os que o rodeiam. FOMO, nomofobia, síndrome da vibração fantasma e phubbing são quatro “sintomas que vários estudos demonstraram estar associados à dependência das plataformas digitais.” Significam, respetivamente, o medo de não saber o que está no centro das conversas no momento (fear of missing out), o pânico de ficar ou estar sem telemóvel, a sensação permanente de que o telefone apita ou vibra e a consequente confirmação, e finalmente o desprezo por tudo e todos os presentes quando se está online.
O capítulo quatro é o mais chocante no que toca ao comportamento individual na utilização das redes sociais e motores de busca. Explica e exemplifica que os dados pessoais dos utilizadores servem para (n)os condicionar e limitar, ao contrário da missão que as próprias redes anunciam na sua apresentação. Os ditos perfis são cruzados com as pesquisas e rapidamente surge a publicidade exatamente na área de interesse do utilizador. Ou seja, não só a pessoa deixa ou limita a sua pesquisa porque as suas preferências lhe aparecem no ecrã como que por magia, como ainda se sentirá mais tentada a comprar.
O que aconteceria se os utilizadores se prestassem a enganar os algoritmos? Se trocassem de perfis ou começassem a pesquisar assuntos até então inexplorados? E se tentassem procurar pessoas, opiniões ou informação a partir de perspectivas distintas das suas? Seria um exercício estimulante, sobretudo do ponto de vista do autoconhecimento.
Tal como a autora refere, todos nós temos uma tendência natural para procurar e ir ao encontro de quem pensa como nós, que nos legitima e nos reconhece. “É mesmo assim: o nosso cérebro tem tendência para ir à procura de informações que confirmem as crenças e as ideias que já lá moram. (…) Se não tivermos consciência de que o nosso cérebro tem tendência a valorizar aquilo em que já acreditamos, se não estivermos atentos ao perigo dos preconceitos e das opiniões apressadas, podemos cair na armadilha de só procurar informações que confirmem esta realidade que achamos confortável (porque é nossa e já a conhecemos).” (pp.56,59)
Quando se fazem amigos e se convive, é inevitável encontrar pontos de contacto e divergências que funcionam como estímulo para o pensamento e a descoberta do outro. Sem isso, ficamos mais limitados e autistas e, enquanto grupo, tornamo-nos perigosos porque menos tolerantes e respeitadores do que não é parecido connosco.
Os desafios sugeridos acima não estão formulados no livro mas poderiam estar. “Seria o mesmo se, em vez de “dados pessoais”, te dissessem que, em troca de poderes usar o Google ou de teres uma página de Instagram, iriam escutar as tuas conversas, seguir-te pelos locais por onde passas ao longo do dia ou analisar as tuas expressões faciais?(…) Queres fazer um pequeno exercício de privacidade: quantas aplicações tens no teu telemóvel? Quantas têm acesso à localização, à câmara e ao microfone?” (p. 96) O livro propõe-se fazer perguntas e estas são preciosas para desencadear outras e promover ações em que os jovens (e não só) possam experimentar uma interação consciente no mundo virtual.
No final do volume, elenca-se um conjunto de estratégias e de links para verificação de factos que por si só daria um belo exercício de questionamento. Trata-se sobretudo de combater a passividade da recepção que leva, inevitavelmente, à alienação.
Numa das temporadas da animação infantil Ninjago, os heróis vêem-se dentro de um poderoso videojogo de onde não conseguem sair. O seu principal desafio é convencer os que ali nasceram e por isso estão programados para uma determinada função a superar este determinismo através da sua motivação. Substituir a inteligência artificial e a recepção passiva pelo livre arbítrio: a mensagem chega por camadas aos mais novos.
Em Gosto, logo existo, Isabel Meira não descura nunca a justificação de cada facto com estudos que lhe servem de prova, para que também esta retórica se oponha vivamente à lógica do boato. Assim, espera-se que os leitores sintam mais confiança no questionamento e que se proponham fazer uma autocrítica construtiva. É também um antídoto para a preguiça que alastra perante o scroll, a publicidade imediata ou as sugestões de novas visualizações depois de pesquisarmos algo.
“Nas redes sociais, os algoritmos mostram-nos conteúdos depois de seguirem, passo a passo, instruções sobre as pistas deixadas pelos nossos perfis. Se fizeres um like na página de Facebook da Billie Eilish, é provável que apareça no teu feed informação sobre os próximos concertos da cantora em Portugal.
Se seguires a página do Wuant no Youtube, o algoritmo vai assumir que gostas de ver este tipo de vídeos e vai sugerir que sigas também o canal do Sirkazzio. Mais uma vez, o objetivo é fazer com que fiquemos ligados o máximo tempo possível. Quanto mais tempo estamos online, mais dados geramos, mais anúncios publicitários vemos e maior é a probabilidade de sermos influenciados e manipulados (sobretudo ao nível das nossas emoções) pelos conteúdos que seguimos.” (p.104)
Vício, rotina e manipulação
Pedro Félix da Costa tem 13 anos e frequenta o 7º ano. Assume que ainda não usa redes sociais e sente-se aliviado por estar longe do vício. Vício é aliás uma palavra que usa mais do que uma vez na breve conversa com a Blimunda. “Consegui identificar muitos dos vícios e atitudes dos meus amigos e colegas com acontecimentos do livro.” E acrescenta: “gostei do facto de o livro retratar muito bem a atualidade e os vícios das pessoas, nomeadamente dos jovens que não têm noção do tempo que perdem ao estarem constantemente a envolver-se numa rede de tecnologias e redes sociais.”
A questão do tempo é provavelmente uma das mais impactantes. Mesmo sem ser debatida e rebatida, torna-se presente quando se fala de comportamento. Mais, parece cara a quem o lê, como se soasse um alerta que não pode ser ignorado. E isso tem clara relação com o vício e a rotina, dois elementos que facilmente se instalam e muito dificilmente se contrariam. A escritora alerta justamente para essa dualidade de pensamento: o lento, que reflete sobre o que descobre, verifica a informação e se questiona, passo a passo, na construção do seu conhecimento, e o apressado, que não tem em conta que há um limite de velocidade para chegar mais longe e que ele é necessário para se sustentar ideias e relacionar factos.
Leonor Graça, de 16 anos, também partilha dessa angústia: “Identifiquei-me com a sensação descrita no livro de que sentimos ter muito menos tempo livre agora. Assim que acabei de ler sobre esta sensação, e me apercebi do tempo que a internet, os jogos e as redes sociais estavam a consumir do meu dia, coloquei um contador do tempo que passo com o ecrã ligado por dia no telemóvel. Esta contabilização de tempo ajudou a reduzir muito as horas diárias que passo ligada ao meu telemóvel.
A internet tornou-se parte da rotina, mesmo quando não tenho qualquer objetivo para a usar. Tornou-se instintivo abrir qualquer rede social e fazer “scroll” sem prestar qualquer atenção às publicações que vão aparecendo. Decidi que se vir três publicações seguidas que não me despertam interesse tenho que desligar o telemóvel e encontrar outra coisa com que me entreter. Foi a maior mudança que este livro causou na minha relação com a internet, esta medida reduziu em muito o tempo que passo por dia no telemóvel, o que me leva a concluir que passava muito tempo, apática, a navegar a internet sem qualquer motivo ou fruto.”
Desinstalar aplicações, instalar um contador de tempo no telemóvel, obrigar-se a estar consciente da indiferença que sente ao navegar por páginas e redes sociais são algumas estratégias sugeridas pelos leitores ideais do livro. Haverá outras, como não levar o telemóvel ou tablet para o quarto, determinar um período de tempo concreto para a utilização de ócio, decidir que há um dia na semana em que os gadgets não se ligam. É preciso criar um código de conduta, um manual de boas práticas. Mas deverá este ser imposto ou deverá ser cada um a determinar um conjunto de medidas que tornem esta relação mais saudável? Bastará aos adultos cuidadores ditar as regras? Serão os próprios capazes de ser modelos perante os mais novos?
Nestes três leitores a leitura teve um impacto de consciencialização. Por isso recomendam Gosto, logo existo a toda a gente, especialmente os jovens. Pedro considera preocupante que “muitas pessoas na sociedade estejam na ignorância quanto a este assunto” e diz-se surpreendido com a dificuldade em distinguir a verdade da mentira na publicidade e no jornalismo. Defende que toda a gente, por isso mesmo, deveria ler este livro. “Ao lê-lo as pessoas podem aprender e alterar o seu comportamento quando se depararem com determinados factos, podem ganhar um novo ponto de vista, uma opinião mais realista acerca dos temas do livro.”
Leonor também destaca a manipulação da informação nas redes e a apropriação de dados como algo extremamente preocupante: “A empresa que trabalhava para a campanha do Donald Trump que foi apanhada a obter, de forma ilegal, informações dos utilizadores do Facebook preocupou-me bastante, faz-me questionar que outros tipos de burlas terão ocorrido para que o candidato americano chegasse ao poder.”
Um dos méritos do livro, segundo Simão, assenta justamente na clareza e objetividade do texto. “Gostei que o livro apresentasse as coisas de uma forma neutra. Acho que em nenhum momento trata as coisas de uma forma paternalista ou alarmista, mas que mostra os factos certos da maneira certa.” Leonor acrescenta que “a informação é transmitida numa linguagem acessível a todas as idades, sem simplificar demasiado os assuntos, de modo a tornar o livro interessante a qualquer leitor.” Mas contrapõe com uma falha: “Poderia ter tido o testemunho de um “nativo digital” para confirmar os estudos apresentados.” Talvez seja necessário dar a voz aos pares, para além de a dar a especialistas em programação, publicitários, jornalistas, artistas. Aceder a testemunhos que ecoem sensações, como acontece no livro. Legitimar, através de canais seguros, fora do universo virtual, comportamentos reconhecidos, permitir o encontro, a partilha, a identificação. Com mais tempo, mais devagar, sem likes.