Diálogo com José Saramago:
receção crítica
Esta série de Diálogos de Carlos Reis junta, empresa, a excelência académica de um professor e estudioso da literatura portuguesa com perguntas, guiadas por uma curiosidade e um conhecimento amplo e profunda da literatura, que nos abrem uma janela para o universo criativo e único de José Saramago.
Carlos Reis, no campo da literatura portuguesa e europeia em geral, não necessita de apresentações. É reconhecido mundialmente como o maior estudioso da nossa época da obra do grande novelista decimonónico Eça de Queirós, de cuja edição crítica é diretor, e é autor de vários livros e coleções de ensaios sobre Eça, assim como de dezenas de artigos. Por outra parte, é especialista em neo-realismo, literatura contemporânea e interessa-se apaixonadamente pela construção da personagem literária. Como vem a propósito da génese dos Diálogos, em 1997 Reis já tinha publicado, entre outros volumes, oito livros sobre a construção do texto literário. Além disso é autor, junto de Ana Cristina Lopes, de uma obra de referência, o Dicionário de Estudos Narrativos. De maneira que quem desembarca na bela ilha de Lanzarote em janeiro de 1997, para sorte dos estudiosos académicos ou dos leitores da obra de Saramago, é um especialista estabelecido na construção da narrativa literária. Reis sabe fazer a Saramago as perguntas que o levam a falar da sua formação de escritor e da sua arte literária de uma maneira acessível, ampla e direta. Durante três dias e quatro sessões, Reis e Saramago colocam mãos à obra. Durante cerca de sete horas, o escritor português cidadão honorário de Lanzarote e o professor açoriano radicado em Coimbra dialogam.
Reis sabe fazer a Saramago as perguntas que o levam a falar da sua formação de escritor e da sua arte literária de uma maneira acessível, ampla e direta.
Não se trata de um diálogo no sentido que muitas vezes damos à palavra, uma conversa desenvolta e casual que vai de um tema a outro sem um rumo definido. Não foi assim que Reis previu esse encontro, sabendo qual era o resultado final que lhe queria dar: este livro. Foram diálogos intensos e sistemáticos para poder registrar o pensamento, as opiniões, os testemunhos do escritor sobre a sua criação literária, mas não só isso. Não é, então, surpreendente que o próprio Saramago o descreva desta forma em seu diário, no dia 25 de janeiro de 1997: «Estou um pouco assustado, pois não é o mesmo ser entrevistado mais ou menos despachadamente por um jornalista e ser alvo das atenções e curiosidades de um professor universitário que me propõe os seguintes [dez] temas de conversa». De facto, antecipadamente Carlos Reis havia enviado a Saramago uma série de assuntos para orientar esses diálogos. Além do conteúdo precioso e de grande utilidade que é o resultado deste encontro, o livro de Carlos Reis é um exemplo de método para quem quer fazer uma entrevista e fazê-la bem: de uma forma ponderada e organizada, o livro progride por esses dez assuntos que incluem a história literária e pessoal do escritor, a condição de ser escritor e a instituição literária, a questão da linguagem literária e, sobretudo, assuntos diferentes que se aproximam ao que mais interessava a Carlos Reis: a técnica literária de José Saramago. As perguntas abordam assuntos fundamentais do universo criativo do escritor, tais como a criação poética e o discurso da poesia, a configuração e a estrutura narrativas, ou movimentos e transformações da literatura, terminando com «diálogos virtuais» (citações de autores escolhidas por Reis). O que vemos ao longo dessas perguntas e respostas é uma aproximação ao processo criativo de Saramago, do primeiro romance, hoje quase esquecido, Terra do Pecado, de 1947, até uma obra fundamental de Saramago para entender o seu trabalho de artista, o Manual de Pintura e Caligrafia, publicado pela primeira vez em 1977, passando por todas as obras que até 1997 tinham sido publicadas. No ensaio-prefácio que abre o volume e ao longo dos Diálogos, Reis conclui que, para Saramago, a procura da verdade artística contém o «presságio do descobrimento do poder mágico e inventivo de símbolos, alegorias e estranhos personagens que povoaram abundantemente a ficção deste escritor». As perguntas de Reis vão do prático e local (como é a vida quotidiana do autor, o seu ritmo de trabalho, o processo de revisão…) a assuntos mais globais como e questão fundamental de Deus no universo de Saramago, inevitável desde a publicação de O Evangelho segundo Jesus Cristo. Venho referindo-me a este livro como de autoria de Carlos Reis, e assim é, mas a expressão exige ponderações. Como Reis sugere no prefácio acima referido, os Diálogos com José Saramago são do escritor, mais do que seus. Pela intuição, pela indagação, e em ocasiões pela interlocução argumentativa e provocativa, os diálogos que aqui temos são um esboço da poética de Saramago, uma luz sobre assuntos significativos para o próprio escritor, os seus leitores e o conhecimento de uma literatura em geral. A voz predominante é, e assim terá pretendido Reis, a voz de José Saramago, que está no centro do palco, guiada por Carlos Reis com as suas perguntas cuidadosamente escolhidas – pedindo mais explicações ou reformulando questões para nosso maior entendimento. Com visível boa vontade, Saramago tece as suas respostas, e a grande maioria delas constituem afirmações substanciais de um escritor que, como o próprio Reis, quer chegar a uma maior compreensão do acto de escrever. Também são diálogos nos quais nós, os leitores da transcrição desta convivência, entramos, já que nos é permitido de certa maneira dialogar com as obras publicadas até 1997, e também com algumas que já estavam em preparação. Como já havia antecipado, a primeira versão de Diálogos com Saramago apareceu em 1998, mais especificamente com a data de impressão de dezembro de 1998, um momento em que Portugal era, sem dúvida, um país levantado em alegria. No entanto, não só Portugal e os países de língua portuguesa compartiam esta alegria, se não todos aqueles simpáticos ao universo luso e os leitores apaixonados pela obra de José Saramago espelhados pelo mundo. Os eventos de dezembro de 1998 – recordados num belo e muito esperado volume do jornalista Ricardo Viel, Um país levantado em alegria: 20 anos do Prémio Nobel de Literatura de José Saramago, tiveram um impacto muito difícil de determinar, mas uma coisa é certa, participavam desta alegria, amplamente compartilhada, inumeráveis hispanofalantes e admiradores de Saramago. Sobre o prémio, como nos recorda uma citação incluída no texto de Ricardo Viel, Saramago demonstrou felicidade pelo facto de o Nobel ter sido, também, recebido como «património hispano-americano» por sentir-se mais perto «da gente de Chiapas e do Brasil» do que de Paris. Assim também se expressa Gabriel García Márquez, Prémio Nobel de 1982, por fax, do México, enfatizando a alegria que o prémio causara nos países de língua espanhola, como se fosse (escreve García Márquez) «um triunfo nosso». Para finalizar, quero, de novo, enfatizar a data em que estes diálogos foram construídos: estamos mais de um ano antes do Prémio Nobel. Os Diálogos carregam as marcas de um tempo e de um espaço literário específicos, vinculando palavras, ideias e argumentos de um escritor que pré e pós-Nobel escreveu com a mesma intrepidez, claridade e autenticidade. Estes Diálogos carregam a marca de um tempo e de um espaço literário específicos, certamente, mas passados mais de vinte anos da sua génese, através das edições sucessivas e da versão castelhana que La Umbría y La Solana publica, somos testemunhas da sua validade e resistência ao passo do tempo.
Sobre a tradução castelhana
Diálogos con José Saramago, versão em castelhano de Diálogos com José Saramago, aparece alguns anos depois da segunda edição portuguesa do texto, publicada em 2015 pela Porto Editora (a primeira edição portuguesa surge em 1998, com a chancela da Editorial Caminho). A versão espanhola da editora La Umbría y la Solana é uma tradução da segunda edição portuguesa do livro e que apresenta algumas poucas modificações em relação à primeira edição: notas prévias adaptadas, substituição do texto «Palavras para uma homenagem nacional” (discurso proferido por Carlos Reis em homenagem a José Saramago no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, em outubro de 1998) pelo texto «A Estátua e a Pedra ou a magia das ficções» (texto lido em maio de 2013 durante a apresentação desse ensaio de José Saramago) e a eliminação de um breve texto de Saramago que servia de «abertura» da primeira versão, uma página do seu diário de 25 de janeiro de 1997 que se encontra nos Cadernos de Lanzarote V. O trabalho árduo e eficiente da versão em castelhano é assinado por uma tradutora profissional, Susana Gil Llinás. Licenciada pela Universidade de Extremadura, é mestre em tradução pela Universidade de Évora, onde leciona atualmente Espanhol e Tradução no Departamento de Linguística e Literatura. No seu currículo de traduções estão estudos académicos e vários romances, incluindo um livro de literatura juvenil. Entre as suas traduções mais recentes estão Frontera y Guerra Civil Española. Dominación, resistencia y usos de la memoria, de Dulce Simões, de 2013, El secreto de Barcarrota, de Sérgio Luís de Carvalho, de 2014, e Cine portugués del siglo XXI, de José Vieira Mendes, de 2018. Traduzir Diálogos com José Saramago, por ser um texto ensaístico mesclado com a fluidez de uma conversa às vezes desinibida, exigiu da tradutora um rigoroso manuseio do estilo e amplo conhecimento da obra saramaguiana. Pela competente e sofisticada tradução do texto original, Susana Gil Llinás oferece-nos uma leitura clara, prazerosa e rica em informações, e os Diálogos com Saramago chegam aos leitores de países hispânicos onde o grande romancista tinha muito incontáveis admiradores. É importante enfatizar a inclusão deste texto na prestigiosas editora La Umbría y la Solana que nos últimos anos se estabeleceu como veículo de textos portugueses em tradução castelhana através da robusta Coleção de Autores Portugueses, dirigida por Antonio Sáez Delgado, que conta com textos de Padre António Vieira, Antero de Quental, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e Lídia Jorge, entre outros. De maneira que não duvidemos que estes Diálogos, traduzidos por Susana Gil Llinás, passarão a ser também uma obra de referência entre o público hispanofalante.
Obras citadas
Reis, Carlos. 1998. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Editorial Caminho.
— 2015. Diálogos com José Saramago. Porto: Porto Editora.
— 2018. Diálogos con José Saramago. Traducción Susana Gil Llinás. Madrid: La Umbría y la Solana.
Viel, Ricardo. 2018. Um país levantado em alegria. 20 anos do Prémio Nobel de Literatura a José Saramago. Porto: Porto Editora.
Tradução para o espanhol de Susana Gil Llinás, editorial La Umbría y la Solana, 2018