Tudo o que quiseres
Madalena Matoso
Planeta Tangerina
Um atividário define-se pela sua função: apresenta um conjunto de propostas de atividades a realizar pelo leitor. Precisamente por se tratarem de propostas, estas implicam uma tipologia discursiva específica, a instrução. Assim se traça o seu esqueleto. Mas é só de esqueleto que falamos. Tal como num mostruário científico, à estrutura óssea acrescentam-se órgãos internos, músculos, veias e artérias, pele. Até, se arriscarmos nos artefactos, roupas e adereços.
É sobretudo dessas camadas, que enriquecem e carregam de intencionalidade este livro, que vale a pena falar.
Começando pelo formato que dificilmente cabe numa prateleira de dimensões convencionais, este adequa-se à intenção das atividades de desenho que se propõem. Abrir o livro sobre uma mesa, espalhar riscadores e poder explorar possibilidades numa relação que se quer demorada. Não é um objeto todo-o-terreno, prêt-a-porter. É um objeto de colecionador, é um livro de autor, depois de intervencionado criativamente pelo leitor artista que qualquer um pode ser.
A ilustração não figurativa contribui para o mesmo fim. A abstração da composição – que obedece ao uso exclusivo do roxo, joga com o preenchimento dos espaços na página e com o fundo – leva a múltiplos processos de associação, descodificação e apropriação. A memória da realidade tem de se relacionar com uma estética em que o referente existe recriado e não reproduzido. As formas tendem para um arquétipo universal, oscilando entre o rudimentar e o infantil, e desafiando por isso a uma leitura e a uma criação mais exigentes. Quando o leitor é convidado a desenhar, tem de o fazer nestas páginas, em diálogo com o que ali existe. Implica-se assim numa interatividade leitora muito mais complexa do que à primeira vista possa parecer.
Cada um decidirá que cores conjugará com o roxo, que contornos desenhará, que espaços (e como) preencherá. A liberdade está toda do lado do leitor e, com ela, a responsabilidade de decidir.
Aqui chegamos à última camada que Madalena Matoso acrescenta ao esqueleto: o texto. São dois modelos que surgem alternados: a enumeração de elementos e uma instrução que com eles se relaciona através do universo temático. Podem ser plantas, corpos, casas, alimentos, objetos… as categorias são tudo menos formatadas. Há toda uma construção desafiante das sequências enumerativas que se alimentam da associação de palavras nem sempre óbvias. Depois do concreto chegam as instruções que libertam para a página e fazem eco do título: “Faz crescer o que quiseres.”; “Enche o que quiseres com o que quiseres.”; “Veste como quiseres.”
Tudo o que quiseres pode ser entendido como um manifesto que se concretiza através do seu próprio uso como ferramenta. Complexo? Nem por isso. É bem menos opaco do que todas as considerações até aqui explanadas. Simples, coeso e coerente. Poderíamos apenas designá-lo como atividário de desenho mas há todo um mundo a separar a simplicidade da superficialidade. É um manifesto com um irónico manual de instruções não prescritivo. O que está longe de ser paradoxal.