Tendências da edição para adolescentes e jovens: entre produtos e fórmulas
O livro como merchandising
O mercado do livro juvenil tem vindo a crescer em várias direções. A categoria young adult, que há muito tinha lugar nas estantes das livrarias e bibliotecas nos países anglo-saxónicos demorou mais a chegar a Portugal. Mas há cerca de uma década começou a ganhar forma, importada com as traduções de originais maioritariamente de língua inglesa. Igualmente, temos vindo a assistir ao crescimento do licenciamento de livros da Disney, não apenas para o público infantil mas também para pré-adolescentes. Agora as adaptações das histórias tradicionais derivam em narrativas mais longas sobre vilãs como Cruela ou Maléfica e partilham os escaparates com as narrativas associadas a filmes e séries produzidas pela Disney, como ‘Descendentes’ ou ‘Bia’ que são vistos no canal de televisão da marca.
A relação com o ecrã deixou de ser unívoca. Se com a Disney o processo começa nos contos tradicionais, é transposto para a tela e regressa ao formato livro, reconfigurado e menos infantil, a verdade é que não se esgota ali. A série Bia, que narra o quotidiano de uma adolescente entre a música, amizades, amores e dramas familiares, não nasce numa narrativa escrita e sim num guião. A coleção que se sucede deriva do êxito da série e consiste numa adaptação linear. Nas informações sobre o autor lê-se apenas Disney, pelo que não existe sequer a figura do escritor.
Algo de semelhante aconteceu com os videojogos. Para além de guias surgem narrativas paralelas, em que o leitor entra nos mundos alternativos de Minecraft, revive a saga de Assassin’s Creed ou acompanha o grupo de amigos no regresso ao restaurante de Five Nights at Freddy’s. A base das narrativas é o jogo e a sua trama, as personagens são depuradas e acrescentam-se mais informações sobre elas e o seu contexto. Porém, o que alimenta o texto é a emoção, o suspense e a sucessão de ações que pretendem seguir as pegadas de jogos que, num ritmo muito mais alucinante, viciam milhares de jogadores em todo o mundo.
Que fenómeno é este que quebra o princípio de criação autoral e se dedica a adaptar em função do público? Estes livros são produtos de merchandising, ao mesmo nível de t-shirts, canecas, posters e tantos outros objetos de coleção; fazem parte de uma espécie de kit de souvenirs de culto. Trata-se de alargar a gama de oferta, de aproveitar modismos e hábitos de consumo. O livro enquanto objeto mantém uma receptividade própria piscando o olho a adultos mais reticentes na compra de outros produtos. Quem nunca perguntou aos pais o que oferecer aos seus filhos e ouviu da sua boca pareceres do género: “ele agora gosta de Fortnite”? E, de repente, confrontados com a oferta, lá se escolhe o livro porque o adolescente já tem outros produtos e apesar de tudo é menos mau. Afinal sempre é um livro…
Do texto para o ecrã, do ecrã para o texto
O que podem ter em comum o Wattpad, a Netflix e uma quantidade infinita de títulos que se estendem do juvenil à narrativa feminina? Uma fórmula. Nem a plataforma social de escrita e leitura, nem o canal, nem tão pouco a produção editorial se esgotam neste encontro. Mas tem-se intensificado uma tendência cujo público se vem multiplicando e diminuindo em idade.
Trocando por miúdos, alguns exemplos: Tiny Pretty Things, Sex Education, A Banca dos Beijos. O primeiro foi escrito por Sona Charaipotra e Dhonielle Clayton (publicado recentemente em Portugal pela Presença), e adaptado a série televisiva pela Netflix. O segundo foi criado como série, produzido pela Netflix e agora deu origem a uma fan fiction, Sex Education, the road trip (editado em Portugal pela Nuvem de Tinta), por uma escritora britânica, Katy Birchall, com obra publicada para o público juvenil. Finalmente, A Banca dos Beijos nasceu no Wattpad, pela mão da também britânica Beth Reekles com tamanho sucesso que foi editado em livro (em Portugal os três livros estão publicados pela Editorial Presença) e adaptado a filme, disponível na Netflix.
O que têm em comum estas três narrativas? Protagonistas jovens que frequentam o equivalente ao ensino secundário e procuram o seu caminho, com relações dramáticas. O principal alicerce social é a amizade e a partir dela ou do seu inverso tudo acontece: lealdade e traição, intriga, inveja, ciúme, culpa, sacrifício, identificação, solidariedade… A amizade é o chapéu temático para que se explorem comportamentos e atitudes sob perspectivas morais. Porém, tudo é hiperbolizado e muitas vezes apresentado em sistemas binários de oposição: amor vs amizade; sucesso vs solidariedade; em suma bons vs maus.
Ellen sente-se culpada por gostar do irmão de Lee, o seu melhor amigo. Lee sente-se traído por Ellen, com quem tinha um pacto que excluia relações amorosas com o irmão. Esta é a trama principal de A Banca dos Beijos, a par do próprio enamoramento e namoro.
Em Sex Education, The road trip, a escritora escolhe seguir quatro protagonistas da série – Maeve, Eric, Aimee e Otis – numa aventura para tentarem inocentar o irmão de Maeve. Cheia de diálogos e pouca reflexão, a narrativa centra-se na justiça, na solidariedade e na confiança. Maeve tem dúvidas sobre o irmão e sente culpa por ter arrastado os amigos para aquela situação ingrata.
Dos três livros, o mais dramático é justamente Tiny Pretty Things, que explora invejas e rivalidades numa exigente escola de ballet em Nova Iorque. A cor da pele, o estatuto social e diversos poderes manipulatórios transformam as três protagonistas em paradigmas exacerbados de emoções.
Nenhuma das obras é particularmente profunda, tão pouco singular. Ao invés, a representação que traça de cada um dos universos é limitada e cheia de sensos comuns. Até que ponto o livro é melhor do que o filme ou a série, é neste caso muito discutível, apesar de em dois casos este ter nascido primeiro.
Na verdade, grande parte da produção cinematográfica e, mais recentemente, de séries para canais da cabo, assenta em livros publicados. A história do cinema está pejada de exemplos de boas e más adaptações. A diferença que se vem operando com mais intensidade é justamente a manipulação dessa relação em função do sucesso do mercado juvenil, que até há poucos anos não era contemplado com autocolantes nas capas dos livros a remeterem para a Netflix como agora acontece. Numa fase intermédia, os livros ganhavam uma sobrecapa ou uma capa nova quando a adaptação cinematográfica chegava ao grande ecrã. Agora, os livros saem depois de comprovado o sucesso das séries ou dos filmes.
O fenómeno não é novo na dita literatura para adultos mas agora recua na idade dos leitores ou espectadores. Se por um lado se criam categorias que classificam a leitura de acordo com faixas etárias, por outro atenuam-se essas mesmas fronteiras com estratégias de marketing. E tudo se desenrola num universo literário pouco original ou exigente.
Uma fórmula mais
O drama é um dos grandes tópicos da novela juvenil. Por se tratar de uma fase de descoberta, de transformação, afirmação, aceitação pelos pares, conflitos familiares, dores de crescimento. Como se trabalha este turbilhão de acontecimentos e emoções depende da pena e do engenho de quem escreve. Não é pelo drama que o texto literário se afunda ou brilha, é e será sempre pela forma como as palavras se conjugam nas frases, pelo ritmo imposto ao leitor, pela harmonia ou dissonância, pela retórica que expõe ou esconde elementos com os quais nos relacionamos em busca dos nossos sentidos subjetivos.
Há bons exemplos na literatura juvenil, quer portuguesa, quer internacional. Ana Saldanha com Escrito na Parede (Caminho) ou Para Maiores de Dezasseis (Caminho), revela pelo não dito tensões e sofrimentos profundos, situações sociais nas margens da sociedade, questões de auto-estima e insegurança. Não são leituras fáceis nem imediatas mas são boas. Afonso Cruz com Vamos Comprar um Poeta (Caminho) ou Os Livros que Devoraram o Meu Pai (Caminho) apresenta hipóteses sociais e psicológicas alternativas, entre distopias e utopias, entre o real e o imaginário e aventura-se por lógicas quase silogísticas e associações improváveis. David Machado com Não te Afastes (Caminho) explora, nos limites do maravilhoso, a viagem iniciática. Para não falar dos já autores clássicos portugueses, Alice Vieira e António Mota ou de Ana Pessoa, que em poucos anos se confirmou como uma voz muito poderosa na literatura portuguesa.
Fora de Portugal não faltam exemplos: David Almond, Malorie Blackman ou Andy Mulligan são apenas três. Mas também é factual que sempre existiram fórmulas ou narrativas mais lineares e moralistas. Todavia, nos tempos mais recentes uma nova tendência tem vindo a assumir-se, numa ligação eventualmente próxima a outra que se expande na literatura dita feminina a partir de As Cinquenta Sombras de Gray. Trata-se de um ambiente marcadamente estado-unidense, dos rituais associados aos liceus e faculdades onde imperam as festas, as repúblicas, as claques e as equipas desportivas, a carta de condução aos 16 anos, as hierarquias sociais e geográficas, os fenómenos de popularidade nas redes sociais. A mistura é explosiva e, mais uma vez, não é de hoje. Nos há muito idos anos noventa do século passado, a série Beverly Hills 90210 representava tudo o que acima se enumera, exceptuando as redes sociais, e era fielmente seguida por hostes de adolescentes que sonhavam com as e os seus protagonistas.
Actualmente, o nível de exposição sobe de tom e há uma violência gratuita que vai da humilhação em presença à disseminação online, passando por confrontos físicos e por longos momentos de experiências sexuais explícitas. Os temas ou motivos narrativos podem oscilar entre a busca da identidade, a violência doméstica, o primeiro amor, a afirmação social mas o traço em comum reside justamente no estilo, na forma como a narrativa se desenrola, com um alto grau de previsibilidade, vocabulário e estruturas sintáticas sofríveis, pouca ou nenhuma margem para que o leitor produza inferências ou deduções menos óbvias, e um imaginário fértil em ritos de passagem no mínimo duvidosos. À pobreza literária junta-se um contexto artificial para leitoras e leitores de geografias alheias à dos E.U.A. que, paradoxalmente, o aceitam sem estranhar (como acontecia no passado).
As obras de Estelle Maskame, entre as quais O Lado Perverso de Kai e a trilogia que relata o amor proibido entre Eden e Tyler, bem como as de Jennifer Niven são um exemplo destas fórmulas que granjeiam sucesso e exploram tensões dramáticas levadas ao excesso, com separações abruptas, personagens atormentadas, segredos e tomadas de posição extremadas. Familias desestruturadas, experiências iniciáticas, risco, drama e mais drama, escola, amigos, pares, viagens, liberdade e opressão, há de tudo um pouco. Falta sobretudo densidade psicológica e ângulos narrativos que explorem a repetição, o tédio, o risível. Estes livros trazem hipérboles emocionais como se a vida de todos os dias não fosse válida, como se não houvesse lugar para o humor, como se uma intriga dependesse de grandes ‘tcharans!’ para sobreviver. É possível que existam contextos aproximados na vida real, é possível que os leitores projetem nos grandes dramas a dimensão das suas dores, angústias e alegrias. Porém, convém não esquecer que nenhum destes será novidade depois de Shakespeare, Dostoievski ou das irmãs Brontë. Haverá drama maior do que aquele que subjaz à icónica frase de Flaubert: “Madame Bovary c’est moi!”?
Desvios possíveis
Até que ponto estas novas estratégias e tendências contribuem para formar leitores, é imprevisível. Haverá hipóteses de quem se entusiasmar com uma ou várias destas leituras progrida para outras? É possível passar da leitura de Assassin’s Creed para romances históricos ou investigações sobre ordens secretas? Talvez sim. E de Sex Education: The Road Trip para Jane Austen, através da autora? Ou, ao invés, para Henry Miller? É factual que houve quem lesse O Monte dos Vendavais de Emily Brontë por este título ser citado em After (Ana Todd). A leitura faz-se de teias e caminhos plurais mas depende do acesso e da competência. E se as alternativas boas vão rareando perante esta vaga de ready mades e fórmulas românticas, dramáticas e eróticas, qual é a probabilidade de o percurso leitor se ampliar e não de se reduzir? Ainda, que diversidade se nos apresenta? Quem é este outro com quem nos identificamos? Não ficamos mais conscientes do racismo nos E.U.A. se, antes de lermos O Ódio que semeias, de Angie Thomas (Presença), tivermos lido Trovão, ouve o meu grito, de Mildred D. Taylor (Editorial Caminho)? E onde o encontramos, excepto em algumas bibliotecas municipais?
Como categoria híbrida que é, a dita literatura juvenil e a literatura jovem adulto cruza com narrativas consideradas para adultos, particularmente no segmento de literatura feminina, outro compartimento herdado e replicado de critérios de organização e promoção no mercado livreiro e editorial internacional. Significa isto que muitos leitores e leitoras poderão assim traçar um percurso pouco ou nada permeável às dificuldades que a leitura literária e teórica implicam, por hábito, conforto, consolo e, o que pode ser mais preocupante, falta de competências que só a experiência leitora diversa e rica poderá desenvolver. Estes livros, como as séries, os filmes e os jogos, são uma tentação e um vício, por isso se constata quão apetecíveis são. Assim, como noutros casos, também aqui se recomenda moderação e sentido crítico.