

Tarrafal e a história de uma insignificância
No mês em que se celebra a liberdade em Portugal, a Blimunda recupera uma entrada dos diários de José Saramago (Cadernos de Lanzarote I) sobre o campo de concentração do Tarrafal e um livro escrito por um homem que lá esteve preso, Silvino Leitão Fernandes Costa.
Às vezes, entra-me a vontade de içar a bandeira branca, subir às ameias e dizer: «Rendo-me.» Não que eu me veja como uma fortaleza, bem pelo contrário, mas sei, como se ela fosse ou nela estivesse, que me andam cercando dois cercos: um, já se sabe, é o dos ódios, invejas e mesquinhices que vou aguentando; o outro, que se vai sabendo, é o dos afetos de muitos que me leem, e esse é o que me derrota. Se este tempo da minha vida tivesse de levar um título, bem poderia ser o do filme de Pedro Almodovar: «Que fiz eu para merecer isto?» Dir-me-ão os mais simpáticos: «Bom, alguma coisa fizeste…» Mas isso, uns quantos livros, valerá tanto que mereça a quadra que me foi dedicada por um pastor de ovelhas (seiscentas parece que tem o rebanho) do Alentejo? Esta, lida ontem na Festa do Avante! e que reza assim:
Tem em conta a luz da mente.
Cada um é como é.
E não pode ser toda a gente.
Aquilo que cada um é.
E, como se não fosse bastante, como se não transbordasse já, estava eu depois a assinar livros (três horas ininterruptas de dedicatórias…), aproximam-se duas pessoas, marido e mulher, que colocam diante de mim, com o livro que tinham comprado, um caderninho, um corta-papel e uma nota onde um e outro estavam explicados… O livrinho, feito de papel de sacas de cimento, havia sido escrito por Silvino Leitão Fernandes Costa no campo de concentração do Tarrafal e estava dedicado nestes termos: «Ofereço, ao camarada e amigo T., como prova de consideração.» «T.» era a abreviatura de Teixeira, apelido do homem que estava na minha frente, de seu nome completo José de Sousa Teixeira, preso também, como ele, no Tarrafal. Quanto ao corta-papel, fizera-o Hermínio Martins, ex-marinheiro de um dos barcos que se revoltaram em 8 de setembro de 1936. Foi ajudante de serralharia do Bento António Gonçalves e morreu antes do 25 de Abril, num sanatório da metrópole. Pensei que tudo isto estava simplesmente a ser-me mostrado, e, ao devolver o livro assinado, restituí também os objetos. Que não, disseram-me, que eram para mim, como lembrança e prova de amizade… Imagine-se como fiquei eu. Agradeci como pude, rodeado pelas dezenas de pessoas que esperavam a sua vez para me pedirem uma assinatura e, com palavras ou sem elas, dizerem que me querem bem.

O livrinho tem dois títulos e compõe-se de quatro partes. O primeiro título, na capa, é «O que será?…», o segundo título, na folha seguinte, anuncia «Coisas da vida e próprias dos homens». A primeira parte transcrevo-a hoje, as outras nos próximos dias (é o mínimo que posso fazer em sinal de gratidão e para que não se perca — se algum dia estes cadernos vierem a ser publicados — a lembrança de um conflito entre amigos e a sua algo extraordinária resolução). Atualizo a ortografia e a pontuação:
Os livros são coisas preciosas tanto por aquilo que dizem como pelo esforço de raciocínio necessário para os fazer.
Depois de feitos, servem de auxílio ao desenvolvimento cerebral do homem.
Conclui-se, pois, que é nos livros onde nós aprendemos tudo quanto desejamos. Tudo depende daquilo que mais nos interessar.
São ainda eles que trazem até nós, duma forma concreta e abreviada, toda a experiência vivida pelos nossos antepassados, da qual nos servimos e serviremos sempre para encarar o futuro.
Quando possuímos um ou mais livros, significa isso que se encontram ao nosso dispor e certamente lê-los-emos tantas quantas vezes quisermos ou necessitarmos para a compreensão do sentido que encerram.
Entretanto, mesmo àqueles que às vezes lemos, embora o seu conteúdo pouco nos interesse — quer dizer, romances de 4.50 a dúzia, ou coisa semelhante — , alguma coisa nos fica gravada na mente, apesar disso.
Todos nós sabemos que é verdade tal facto.
Bem, mas já vai sendo tempo de mudar de “disco”. O meu objetivo não é falar sobre livros. Nem sequer fazê-los ou ainda discutir.
Até aqui, simplesmente, pretendo salientar o valor das coisas escritas.
Porém, para melhor concretização, farei um paralelo entre a escrita e a palavra.
Supõe que eu percebo de eletricidade a “Potes” e estive durante duas horas a falar-te do assunto. De certo não poderias ter apreendido tudo quanto disse. Mas se escrevesse ficaria ao teu alcance o assunto e dar-lhe-ias as voltas que precisasses.
Agora dirás tu:
— Mas a que propósito vem isto, não me dizem?
Depois acrescentarás: Sempre há cada maduro!… Que mal fiz eu?…
Calma… o resto vai já a seguir.
Antes de prosseguir, dir-te-ei mais coisas.
Eu antigamente, e ainda hoje, costumava escrever os factos que se passavam comigo. Simplesmente nunca, que eu me recorde, os dei a ler a segundos. Não porque isso me custasse muito, ou contundisse com a minha maneira de ser. Talvez fosse por comodismo. No entanto, como vais ver já mudei um pouco, embora tenha em muita atenção os casos, etc. …
De resto, tu sabes também como eu. Um indivíduo, só, nunca poderá analisar acertadamente o que faz ou escreve. Torna-se necessário, na maioria dos casos, recorrer à crítica. Bem entendido: a outros que estejam à altura de criticar com justiça.
Ora, sendo assim, eu também desde já fico ao teu dispor para ouvir o que te aprouver acerca destas minhas simples linhas que visam simplesmente narrar um facto passado e ao mesmo tempo criticá-lo.
Desde já, desejo que não me confundas com algum “gaijo” que tem, ou pretende ter, aspirações à literatice. De resto tu verás.
É muito natural encontrares erros tanto na construção como na forma de redigir e ainda ortográficos ou de pontuação. Mas isso é fruto da preguiça a que me votei durante alguns tempos. Destes tenho eu pena, mas não lamento. O futuro, depois de analisar o passado, é o que interessa. Agora as literatices detesto-as.
Além disso, eu elaborei este trabalho muito sozinho e fi-lo ao correr da pena.
Por outro lado, não suponhas que te vou dar conselhos; não os necessitas.
Somente farei isto: narrarei um facto e comentá-lo-ei com o que me apraz dizer.
Ao narrá-lo, não suponhas que o faço ressentido. Não. Dei-me a este trabalho, simplesmente, para te dar a conhecer dum modo franco e claro o mau efeito que produzem certas ações que por vezes praticamos, mas isto todos, e que nos colocam num grau quase comparado ao dos animais irracionais.
Claro está, tudo isto é natural. Todos somos homens. No entanto, muitas vezes esquecemo-nos de que possuímos raciocínio. E isto é tão notório quanto é certo que o meio em que vivemos é já muito diferente daquele outro lá fora, embora ainda imperfeito.

Entrando, finalmente, no assunto.
Tu estás lembrado, certamente, do caminho que deste à tábua. Queimaste-la, não é verdade?
— Mas que tem este filho da puta que ver com a tábua?… Era dele?
Lá vem outro a meter-se na minha vida!
Oh cabrões! Deixai-me em paz!…
Isto sou eu que suponho que dirás, no entanto, desculpa o exagero.
De resto, isto não vai nascer daqui nenhum julgamento. A coisa em si não tem importância, nem eu lha liguei como te poderá parecer.
No entanto, continua a ler: esse caso passou-se quase se poderia dizer sem eu ter culpa diretamente. Vais ver.
Para encadernar, ou brochar, necessitei duma tábua, utilizei para isso aquela onde a rapaziada se diverte a jogar o dominó. Mas a certa altura saí; e quando voltei continuei o meu trabalho. Passados instantes, já o mal estava feito, verifiquei que a tábua já não era a mesma. Tinham-ma então trocado, para jogar. Preguntei-lhes: esta tábua é de fulano? Responderam afirmativamente. E eu um pouco aborrecido disse-lhes: bonito serviço, seus cabrões! Agora vai haver discussão por causa disto, e vocês é que são os responsáveis!…
Passados uns instantes, pensei no caso e vi um remédio, a tábua tem que ser aplainada e depois vai ao polidor e fica nova. Ele nem dará por isso. Descansei com esta solução.
Porém depois tive que fazer e nunca mais me lembrou. Descansei de facto.
Passados uns dias — um ou dois —, tu dás com os riscos e se calhar estavas azedo e záz. Tábua para o lume.
Eu não sabia.

Ao entrar na barraca é que me puseram ao facto e até dum modo que me chocou.
Claro, não acreditarás que eu sou tão sentimentalista que até tivesse chorado. Isso não. De resto em mim será mais fácil rebentar.
Só com um violento ataque de nervos seria fácil soltarem-se-me as lágrimas.
Mas neste caso, eu comovi-me por ver que a rapaziada me comunicava o caso com tristeza ou então talvez fosse um daqueles momentos em que não há vontade de rir. Mas não! Eles ficaram sentidos momentaneamente.
Pois bem. Está o facto relatado. Agora vamos ao capítulo das conclusões.
Eu, não te disse nada naquele momento por ver que estavas um tanto enervado e além disso, por já ter reconhecido e isto desde o princípio a minha abstração para não ver que a tábua era mais pequena.
Tentei ensaiar novo processo de solução. Fui ter com um carpinteiro e levei-lhe um papel — que tu devias ter visto — com as dimensões da tábua, mais ou menos; mas o carpinteiro disse-me que sim e até hoje. Isto apesar de eu lhe dar a entender que tinha urgência.
Tencionava pois dizer-te alguma coisa nessa altura. Mas até hoje não apareceu tal tábua, não quis esperar mais tempo.
E agora repara, não terias feito melhor se guardasses a tábua? Primeiro, procuravas quem tinha sido o cavalheiro ou o sacana, e depois dizias-lhe: meu caro quero estes riscos tirados e para a outra vez mais respeito por aquilo que é dos outros. Eu então, tinha que te dar razão e ia pô-la como nova.
Assim não solucionaste nada. Agiste como uma faísca, repentinamente, e a ação é condenável.
Claro está, o “auto de fé” foi feito à tábua e intimamente não sei se a mim. Porém, como não ardi, foi a tábua que sofreu.
Eu também já tive esse feitio se bem que dum modo diferente e com muito menos frequência. Mas recordo ainda, que quando fazia casos semelhantes era só em circunstâncias de não poder partir a cara ao causador do meu destrambelhamento de nervos.
Mas repara a prisão tem-me modificado alguma coisa nesse aspeto se bem que de vez em quando sinta cá dentro a “besta”.
No entanto, hoje fico chatiado quando dou a perceber que estou enervado.
E porquê?
Porque sei que os nossos companheiros, isto é os nossos camaradas, perguntam logo a eles mesmos: “que foi? que aconteceu?” “ele hoje está arreliado?”
E isto, que poderá parecer bisbliotice não é. E tu sabes, também como eu, o que é.
É uma realidade forçada, sabes.
E para que, analisa:
Aqui, no acampamento, encontram-se camaradas presos há 4, 5, 6, 7, 8, 9 anos portanto convivendo uns com os outros e resulta que existe uma familiaridade muito grande entre todos eles. Todos, bem entendido. Naquela parte, que é a maioria, que tem sabido portar-se com dignidade nas horas em que o “Colete” aperta, sabendo unir-se às convicções que possui para com coragem suportar toda a casta de patifarias que certas bestas-feras que por aqui têm passado nos têm infligido.
Por consequência, é bem claro. Não seremos perfeitos, mas possuímos já algo do que é necessário para mais nos aperfeiçoarmos.
E agora diz-me: achas razoável, nós que somos jovens e que seremos amanhã os futuros homens, que estejamos a cultivar a neurastenia ou pelo menos a dar-lhe mais largas? Certamente que não!
Claro, tudo depende da maneira de ser, dir-nos-ão. Mas repara se não andarmos já com predisposição para os atos repentinos creio que teremos tempos de ponderar.
Quantas vezes dá vontade de dar largas à bílis, mas por outras razões muito mais justificáveis e homens muito mais durázios que nós se encolhem.
Olha que não é com o medo. É porque se lembram de que somos camaradas.
É certo, esta palavra camarada está muito generalizada. Mas nota, e tu sabes bem.
O seu significado é qualquer coisa mais altivo e digno do que aquilo que certos sapateiros da política dizem ou ainda o que outros imbecilmente possam dizer.
Por isso, meu caro, a vida e o papel que dentro dela temos que desempenhar, é muito mais importante do que estes pequenos azedumes de que por vezes somos vítimas.
Não te preocupes com tais ninharias e faz quanto possível para te desviares desses momentos de descontrol, que o tempo de prisão nos ocasiona e em que deixamos de ver os nossos camaradas, para ver neles os homens vulgares, lá de fora, dos quais muito erradamente o Albino Forjaz de Sampaio faz considerações.
Agora quase que sou obrigado a pedir-te desculpa, por te reconhecer que já sou muito extenso. É o que sucede a quem pouco conhece sobre redação.
Cheguei, finalmente, às conclusões, como te havia dito. Estou convencido de que é melhor forma do que se te expressasse verbalmente.
Tem o objetivo, além de falar de coisas que por todos nós passam, também de te dar a conhecer duma forma honesta e concreta a minha opinião. Acharás justa ou injusta.
Segundo: serviu-me de exercício de redação. Embora eu não pretenda ser advogado ou coisa semelhante.
Terceiro: dar-te-á a facilidade de concluíres concretamente o meu propósito e creio que não encontrarás, nele, aspetos destruitivos.
Encontrarás, carência de bom português, na redação, etc. Porém o assunto não é descabido nem pretensioso.
E para finalizar, porque já é tempo, acrescentarei que nunca constituirá forma de proceder resolvermos os nossos assuntos, ainda os mais íntimos, pela brutalidade.
Ninguém, melhor do que nós poderá dar-se conta dos seus delitos e corrigi-los. É uma questão de vontade e de disposição.
Suponho ter sido claro e, além disso, não usar de formas imperativas que dessem origem a um má interpretação do que me propus fazer.
E, é tudo.

É tudo. Dir-se-á que é a história de uma insignificância. Mas haverá, num campo de concentração, insignificâncias?