O que vem à rede Sara Figueiredo Costa 6 Julho 2021

Sem narrativas, sobra pouco da humanidade
Uma crónica de Julián Fuks a lembrar a importância da narrativa para a nossa existência enquanto seres humanos e as ameaças que a pandemia tem colocado a essa dimensão.

No seu espaço de crónica no canal Ecoa, da UOL, o escritor brasileiro Julián Fuks escreve um texto dolorosamente realista sobre o modo como a vida de tantas pessoas se tornou isolada com a pandemia, apesar das tantas reuniões e até participações em debates virtuais nos quatro cantos do mundo, e sobre como esse isolamento não nos é natural: «No último mês estive no Egito, na Inglaterra, em Brasília. No último mês não estive em parte alguma. Levei minhas filhas à escola, deixando-as no portão, trocando acenos com algumas mães com quem costumava trocar palavras. Fiz compras no mercado do bairro, me tomaram quinze minutos e nenhum olhar, no início da noite já estavam entregues em casa. Tudo acomodei na despensa e na geladeira, com as meninas subindo nas minhas costas, a mais nova escalando as minhas pernas a qualquer hora, exigindo colo: esse tem sido o cansaço dos dias.»

Para além do quotidiano, que se tornou uma sucessão informe de gestos atravessados pela protecção e pela rapidez com que despachamos todas as situações que impliquem presença junto de outros, Fuks reflecte sobre uma outra dimensão que a pandemia veio afectar profundamente: «Vivemos o tempo do déficit narrativo — e, por coerência, por lógica, não pode haver impacto algum ao fim desta declaração exagerada.» Essa dimensão narrativa da nossa vida, individual e colectiva, é um dos traços que nos define enquanto seres humanos e é igualmente o ponto central da matéria de todas as crónicas: «Ainda assim, descubro agora, é quase sempre algum deslocamento o que instiga o cronista, o que o incita a tomar a palavra e enfim narrar. Se a vida não lhe oferece algo de minimamente insólito, de improvável, de curioso, um rasgo ainda que discreto no tecido do comum, resta-lhe pouco mais que o silêncio ou a metalinguagem.» E apesar disso, o autor de A Resistência não deixa de persistir nesta escrita cronística, confirmando que a dimensão narrativa que nos assegura a existência não foi totalmente aniquilada por um vírus.

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