Destaque Sara Figueiredo Costa 3 Janeiro 2024

Seis livros para salvar do ano

Saem livros novos todos os dias. Em certas alturas do ano, podem chegar às livrarias dezenas de novos títulos num só dia. Dar conta de todos aqueles que nos invocam, desassossegam ou apelam seria tarefa para muitas vidas e, já se sabe, só temos uma. Entre as centenas de livros que passaram pelas livrarias em 2023, houve vários que acabaram por não chegar às páginas desta revista. Não foi falta de interesse ou de apelo, mas antes de espaço e de tempo, essa dupla que a física quântica garante ser inseparável. Antes que o ano acabe de vez, recuperamos meia dúzia desses tantos livros que não chegaram a passar pela Blimunda, na esperança que encontrem leitores antes das doze badaladas. Ou depois, porque os livros não têm prazo de validade e podemos sempre regressar às suas páginas, sem pressas nem imposições de “novidade”.

A Espera
Keum Suk Gendry-Kim
Iguana
Tradução de Yun Jung Im

A autora sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim entrevistou várias pessoas, incluindo a sua própria mãe, e a partir dessas entrevistas criou esta narrativa em banda desenhada, a reconstrução possível da história de parte da sua família e um eco muito preciso da história de tantas famílias coreanas. O cenário é o da Guerra da Coreia, mais precisamente o pós-guerra, altura em que muitas famílias foram separadas por uma fronteira que rapidamente se tornou impossível de atravessar. Essa separação continua a exercer a sua influência hoje, repercutindo uma série de traumas que atravessam famílias e gerações, e A Espera dá conta dessa repercussão, ampliando a história das suas personagens para algo mais vasto. Uma dessas personagens é Gwijá, uma mulher de 92 anos que continua à espera de reencontrar o seu filho mais velho, que se perdeu no percurso de uma coluna de refugiados que fugiam do norte da Coreia. Passaram sete décadas e a espera continua.

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Poesia
Luiza Neto Jorge
Assírio & Alvim

Não é a primeira vez que se publica a poesia de Luiza Neto Jorge num só volume. Depois de Os Sítios Sitiados, recolha preparada pela poeta em 1973, e de A Lume, publicado em 1989, com a edição a começar a ser organizada pela autora e concluída por Manuel João Gomes, sai agora um volume chamado simplesmente Poesia. Para além dos poemas de todos os livros já publicados, aqui se reúnem também alguns textos dispersos e poemas que aparecem nas edições originais de livros como A Noite Vertebrada, Quarta Dimensão e Terra Imóvel, mas que não foram integrados em Os Sítios Sitiados. A edição deste volume é da responsabilidade de Fernando Cabral Martins, que assina o prefácio contextualizando a obra de Luiza Neto Jorge: «Luiza Neto Jorge faz parte do grupo que publica um livro, Poesia 61, que dá nome a um dos últimos na sucessão de grupos de vanguarda que se inicia no final de oitocentos e termina nos anos 60 do século XX. Mas a relação de Poesia 61 com as tendências internacionais suas contemporâneas, como o minimalismo ou o experimentalismo, resulta menos da vontade de continuar na senda dos ismos, e mais de uma recusa da literatura então dominante em Portugal, o neo-realismo e o surrealismo – ainda que Carlos de Oliveira e Mário Cesariny permaneçam como suas referências fundamentais.» (pg.15, Prefácio).

→ assirio.pt


Vale dos Vencidos
José Smith Vargas
Chili Com Carne

Escrito e desenhado ao longo de uma década, Vale dos Vencidos é o retrato de uma derrota colectiva. Nesta banda desenhada a preto e branco, um registo fragmentário, com vários episódios e personagens partilhando um espaço e um tempo comuns, Smith Vargas fala-nos da especulação imobiliária, da transformação das cidades (Lisboa, em particular) em centros dedicados ao turismo e do modo como os habitantes urbanos foram sendo despejados das suas habitações e dos seus espaços colectivos de lazer, cultura, desporto, política. Na verdade, é sobretudo de política que aqui se fala, essa condição da pólis e da nossa existência colectiva. Quem tenha vivido ou passado por Lisboa nos últimos anos reconhecerá lugares e alguns protagonistas, mas cada uma das histórias aqui desfiadas podia ter lugar noutras cidades. A mercantilização da cidade não um é exclusivo lisboeta, já se sabe, e se Vale dos Vencidos não se dedica a apresentar os lugares como inequívocos, também não deixa de os tornar reconhecíveis para quem deles tenha alguma referência. E quem diz os lugares diz os modos escolhidos por grupos económicos, empresas e responsáveis autárquicos para prometer um paraíso na terra a quem alinhar neste processo – só que o paraíso é noutra terra qualquer, fora da urbe, longe das ruas que se transformaram nesta espécie de parque temático cheio de cafés gourmet, hotéis e lojas de lembranças que não hão-de lembrar a quem as compre nada de verdadeiramente memorável.

→ chilicomcarne


Ned Ludd e a Rainha Mab
Peter Linebaugh
Antígona
Tradução de Pedro Morais

Por volta de 1779, um homem chamado Ned Ludd terá sido acusado de ociosidade e espancado pelo seu patrão. Em resposta, decidiu destruir o tear mecânico que usava pra trabalhar. Pode ter sido aí que começou a lenda que mais tarde vai estar na origem ao movimento ludita, que preconizava a destruição de máquinas como forma de combater os efeitos nefastos da industrialização, nomeadamente o sustento roubado por quem, detendo as máquinas de produção, dispensava o trabalho de várias pessoas. Em 1813, o poeta romântico inglês Percy Shelley publica um poema intitulado «A Rainha Mab». Convocando uma figura lendária, uma possível rainha das fadas vinda sabe- se lá de que livros antigos, Shelley criou uma figura feminina que foi depois reclamada por alguns movimentos operários e políticos surgidos décadas mais tarde. É no cruzamento destas duas figuras que historiador norte-americano Peter Linebaugh situa a reflexão que faz neste Ned Ludd e a Rainha Mab, com o subtítulo Destruição de máquinas, Romantismo e os vários comunais de 1811-1812. Linebaugh recua ao século XIII e ao início das vedações dos campos comunais, apropriação que, ao longo dos séculos seguintes, reduzirá de tal forma a terra da qual toda a gente poderia tirar livremente o seu sustento que, quando chega a industrialização, é nas mãos exclusivas dos proprietários das máquinas que fica a possibilidade de sobrevivência. O resultado, conhecemo-lo bem e pese embora este texto se refira sobretudo ao século XIX, os seus ecos não são estranhos a este século XXI de todas as automatizações.

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1964: Olhos da Tempestade
Paul McCartney
Porto Editora
Tradução de Jorge Pereirinha Pires

Entre os últimos meses de 1963 e o início de 1964, os Beatles andaram em digressão pela Europa e pelos Estados Unidos da América. São desse período boa parte daquelas imagens de pessoas a gritar nos aeroportos e nos concertos, desmaios e faltas de ar colectivas… Nesse período alucinante, Paul McCartney foi registando alguns instantâneos na sua máquina fotográfica de 35 mm, imagens feitas em cidades como Liverpool, Londres, Paris, Nova Iorque, Washington ou Miami. Não são as imagens das multidões, mas apontamentos do quotidiano da banda, dos sítios por onde passaram, dos momentos que viveram fora dos palcos e da turbulência. 1964: Olhos da Tempestade reúne 275 fotografias, muitas delas agora publicadas pela primeira vez, às quais se junta um prólogo do próprio Paul McCartney, relembrando a agitação daqueles concertos, mas também as vivências que escaparam às muitas câmeras fotográficas e de filmar que acompanharam os quatro de Liverpool nessa fase em que se transformaram num dos grandes fenómenos globais dessa loucura coletiva que foi o século XX. Uma longa introdução da jornalista e historiadora norte-americana Jill Lepore ajuda a contextualizar o fenómeno dos Beatles na sua época, convocando acontecimentos e turbulências sociais e políticas várias.

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Mulheres, Raça e Classe
Angela Davis
Orfeu Negro
Tradução de Dina Antunes

É um dos livros essenciais do feminismo, mas também desse espaço que se descobriu povoado pelo cruzamento de várias lutas. Mulheres, Raça e Classe são treze ensaios de Angela Davis que percorrem a história dos movimentos de luta pelos direitos das mulheres, sobretudo nos Estados Unidos da América, entre a fase do abolicionismo e os nossos dias. Nesse percurso, Davis convoca outras discriminações, como o racismo e os privilégios económicos, mostrando que é na intersecção de diferentes questões e causas que melhor podemos compreender o mundo e que lutar por igualdade salarial, por exemplo, é também lutar pelo fim dos privilégios atribuídos às pessoas brancas e pela redistribuição da riqueza. Sem esse cruzamento entre movimentos e lutas, é difícil alterar profundamente a sociedade, e talvez por isso este continue a ser um livro incómodo para quem prefere compartimentar assuntos, deixando quase tudo na mesma.

→ orfeunegro.org