Regador: uma horta no coração de lisboa
Com vontade de recuperar a ligação com a terra, encontrar outras formas de consumo e de vivência do espaço público e fortalecer laços comunitários, a Associação Regador instalou uma horta no bairro da Penha de França, em Lisboa, e fez dela um espaço de toda a gente e para toda a gente.
Todas as fotos © Associação Regador
O projecto Regador começou com o plantio de pequenos jardins em Lisboa, junto à Biblioteca de São Lázaro, no Mercado de Sapadores e em outros espaços que há muito pediam para ter vida para além do alcatrão e da calçada. Pouco depois, nasceu a Associação Regador, que, desde há um ano e meio, é a responsável por uma horta comunitária instalada na Penha de França. Numa pequena porção de terra em frente às torres do Alto da Eira, mesmo ao lado da Vila Cândida, associados e amigos deitaram mãos à obra e criaram uma horta em socalcos que tira o maior partido do pouco espaço disponível e onde se vêem vegetais de muitos tipos, algumas árvores de fruto em crescimento e ervas aromáticas. Com o passar dos meses, a horta cresceu e foi sendo acompanhada por outras conquistas. Para além da terra plantada e tratada, o espaço conta também com um forno a lenha, construído pela comunidade, e com um pequeno barracão de apoio às actividades cujo telhado se fez com telhas moldadas e cozidas por quem se juntou a este projecto.
Maria Freitas, uma das sócias fundadoras desta associação, explicou à Blimunda que «o Regador nasceu de um grupo de amigos e vizinhos da Penha de França e de Arroios que se aperceberam da necessidade de andarem um bocadinho mais devagar, de desacelerar o ritmo de vida. Percebemos que o facto de sabermos o nome de quem vive ao nosso lado faz uma grande diferença. E isso, juntamente com os nossos interesses de procurar soluções de sustentabilidade para o futuro e com o amor de voltarmos à terra, com todos os benefícios que isso nos traz, fez-nos começar a fazer pequenos jardins verticais por Lisboa até sermos convidados a intervir neste espaço da Penha de França.»
Acompanhando uma das bermas da Rua Frei Manuel do Cenáculo, o espaço onde agora cresce uma horta era, ainda há poucos anos, um baldio cheio de lixo como tantos outros da cidade. Apoiados pelo programa Bip/Zip, que viabiliza diferentes tipos de intervenção social ou cultural em bairros ou nas chamadas Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa, o grupo começou com um projecto chamado Regar o Alto da Eira, que previa a construção e dinamização de uma horta. Entretanto, já avançaram para um segundo projecto Bip/Zip, actualmente em vigor, que se dedica à criação de soluções energéticas sustentáveis e colectivas para o espaço. De regresso ao início da aventura, Maria Freitas deixa claro que o Bip/Zip foi fundamental para colocar de pé todo o projecto e garantir vários caminhos para o futuro: «Permitiu-nos trabalhar numa escala maior e testar alguns conceitos, nomeadamente o de fortalecermos uma comunidade em torno de cultivarmos e colhermos juntos e além disso mostrarmos é possível apropriarmo-nos do espaço público desta forma produtiva, que não só pode alimentar as pessoas como também as pode aproximar. Ali temos um espaço que faz tudo isso de diferentes formas: é um espaço para convívio, partilha de conhecimento, de experiências, onde temos uma programação cultural variada, formações. No fundo, demonstramos que as cidades podem efectivamente ser parte da solução, sempre com soluções colectivas, pensadas em comunidade, que aproximem as pessoas em torno de cultivarem o seu próprio alimento para este não ter de de viajar quilómetros e quilómetros até chegar à nossa porta.»
Viver a cidade de outro modo
Hortas no espaço urbano lisboeta não são fenómeno novo, ainda que agora ganhem outros contextos, sobretudo pela constatação de que as cidades não podem existir de forma saudável sem espaços verdes. A juntar a esta consciência ambiental, há também a questão da produção alimentar, um dos grandes desafios da humanidade num tempo em que as alterações climáticas já arruinaram a agricultura em tantos lugares do mundo e em que a seca está a obrigar Portugal a enfrentar a necessidade absoluta de encontrar outras formas de garantir alimento para toda a gente. Ora, se sempre houve hortas com alguma dimensão à volta de Lisboa e pequenas porções de terra cultivada em muitos bairros da cidade, esta prática de uma agricultura de pequena escala ganha agora outros contornos, cruzando necessidade alimentar, consciência ambiental e vontade de criar outras formas de sociabilização e apropriação do espaço público. A questão alimentar não é, portanto, a única a ser tida em conta, tanto mais que a possibilidade de alimentar toda a comunidade lisboeta com hortas comunitárias é quase impossível de alcançar, como explica Maria Freitas: «Sabemos que este tipo de soluções não vai alimentar toda uma cidade, mas na verdade reduz a pegada e é possível aprendermos e passarmos a escolher os alimentos que consumimos e começarmos a cultivar mais à nossa porta e uns para os outros. Acho que isso faz uma diferença enorme, não só na pegada ecológica, mas também na forma como consumimos e como vivemos o nosso dia a dia. Um projecto destes, colectivo, pode ser uma missão muito mais importante e com um impacto muito maior. Não temos de plantar tudo fora das cidades e viver aqui vidas desenfreadas, podemos contribuir e viver de outra forma e estar de outra forma.»
Com o apoio do segundo Bip/Zip, o Regador quer continuar a desenvolver esta horta, mantendo o foco nos modos sustentáveis de habitar a cidade: «Construímos uma estufa, estamos a construir um sistema de rega com o charco como reservatório de água, as condutas em barro que se vão prolongar pela horta, vamos ter um moinho de vento, uma cozinha a luz solar. No fundo, estamos a criar recursos no espaço que nos permitam dinamizar ainda de outras formas. Não deixa de ser um projecto piloto em que não só alimentamos, mas pensamos numa série de soluções sustentáveis para o futuro, sempre colectivas, para manter as coisas, ter energia para as manter. Vamos ter uma pequena eólica e um painel solar, ou seja, queremos mesmo ser sustentáveis na produção de energia e com outras soluções artesanais de manutenção do próprio espaço, e vamos ter recursos para serem trabalhados de diferentes formas, podemos dar outro tipo de formações, mas podemos receber toda uma comunidade escolar que podem aproveitar o espaço de uma outra forma. A ideia é mesmo conseguirmos que aquele espaço seja apropriado pelas pessoas tirando partido de todas as potencialidades que ele tem. Não é gigante, mas dá para fazermos imenso.»
O trabalho da terra não é brando e quem o romantiza, imaginando que a agricultura é uma actividade bucólica que não precisa de esforço para mostrar resultados, engana-se redondamente. No entanto, o trabalho nesta horta comunitária é muito repartido e vive dos associados do Regador, mas também dos vizinhos que se vão juntando, como conta Maria Freitas: «Vamos tendo pessoas que se aproximam, conhecem o projecto e acabam por regressar e trabalhar activamente, dentro da sua disponibilidade. Cada um dá o que pode e de diferentes formas. Existe também a comunidade envolvente, residente no local, particularmente idosa, que mesmo que não possa participar nas actividades de ir cavar e construir, tem toda uma apropriação diferente do espaço, ou seja, contribuem com compostor para a horta, com sementes e plantas, protegem o espaço na nossa ausência, ou seja, há toda uma comunidade alargada, quer seja próxima ou de outros sítios de Lisboa ou até de fora. A porta está sempre aberta, estamos lá todos os sábados, que é o dia em que trabalhamos, colhemos. É mesmo de todos para todos, basta aparecer.»
Festival Regador
No segundo fim de semana de Maio, a Associação Regador abriu as portas da sua horta comunitária aos vizinhos da Penha de França e a toda a gente que quis conhecer este projecto e outros tantos projectos similares. Oficinas de culinária e de compostagem, aulas de bicicleta para os mais novos, refeições partilhadas, debates e alguma música fizeram parte do programa do primeiro Festival Regador, que também teve, em permanência, um mercado de produtores de pequena escala.
«No fundo foi uma amostra do que já fazemos ao longo do ano, espalhado por diferentes iniciativas», conta Maria Freitas. «O facto de concentrarmos no mesmo espaço, durante poucos dias, várias entidades e vários interesses desta temática e de fazermos tudo junto proporcionou um contacto mais directo com quem se interessa pelo assunto.» Durante o festival, a diversidade dos participantes foi notória. À sombra das árvores, pessoas de diferentes idades participaram em conversas com dinamizadores de outras hortas comunitárias, como a Horta da Faculdade de Ciências de Lisboa ou a Agrofloresta Bela Flor, e com gente de cooperativas de produção e consumo, projectos de mobilidade activa, associações culturais que não descuram a sustentabilidade e a questão alimentar nos seus programas. De manhã e à tarde, houve oficinas de cultivo doméstico, compostagem, bicicletas ou jogos. À noite, para além de um jantar comunitário organizado pela cantina social mensal itinerante À Mesa!, houve música e espaço para dançar, sempre mantendo essa ideia de criar ligações entre os muitos membros de uma comunidade. Ou, melhor, dito, essa ideia de criar comunidade, uma vez que os presentes não eram todos habitantes da vizinhança da horta e alguns vinham mesmo de fora de Lisboa, juntando-se a quem vive quase ao lado deste espaço comunitário. No sábado à noite, no palco, quem tomou conta da música foi o músico John Douglas, nascido no Brasil e habitante da Penha de França. De guitarra em punho, enfrentando a ventania nocturna que costuma atravessar o bairro, cantou sobre a sua terra natal, amores e desamores, mas também sobre essas formas que vamos encontrando de nos mantermos ligados à terra enquanto nos ligamos uns aos outros.
«Em três dias foi possível visitar o espaço e receber imensa informação ao mesmo tempo, o que potencia ainda mais o tema e a reflexão», diz Maria Freitas, em jeito de balanço desta primeira edição do Festival Regador. «Foi muito positivo perceber que as outras entidades que convidámos para conversarem, estarem connosco e partilharem os seus projectos receberam este festival de uma forma tão boa. No final, havia vontade, por parte da maioria, de criar uma rede, de pensar coisas em conjunto, por isso acho que foi mesmo muito produtivo. Quem sabe, talvez daqui saiam outras ideias que podem ser muito boas para a cidade.»
Para já, as actividades da Regador continuam. Depois do festival, já houve sessões de cinema ao ar livre e refeições partilhadas desde a confecção à degustação, aproveitando o forno de lenha para fazer pizzas. Depois de retirarem cerca de 30 toneladas de entulho residencial do espaço que entretanto se transformou em horta, os associados do Regador e os vizinhos, de mais perto ou de mais longe, que se vão envolvendo neste projecto continuam a cultivar e a colher, a conviver e a descobrir, em conjunto, outras formas de habitar a cidade e de reclamar outras utilizações para o espaço público. Como afirma Maria Freitas, «isso mostra que é possível reabilitarmos os terrenos que existem na cidade e há muitos terrenos que podem ser aproveitados. Adoraríamos poder apoiar outros grupos na realização disso mesmo… Nós não podemos multiplicar-nos e este projecto exige uma dedicação muito grande, portanto, o ideal seria que conseguíssemos replicar.» Que mil hortas floresçam, então.