Raia: uma feira para traficar livros, fanzines e outros objectos
Esteve para acontecer em Novembro do ano passado, mas a pandemia trocou-lhe as voltas. Agora, a feira Raia – Tráfico de Edições está de volta e promete evitar o vírus do momento e manter o fluxo de edições independentes a circular.
A 5ªedição da feira Raia – Tráfico de Edições e Afins está agendada para o próximo fim de semana, 26 e 27 de Junho, no espaço Anjos 70, em Lisboa. Num ano marcado pela pandemia de Covid-19, o lugar não terá tantas bancas e participantes como em edições anteriores, mas continuará a ser um espaço privilegiado para medir o pulso ao trabalho de editores independentes e projectos editoriais que não se encontram na maioria das livrarias.
Organizada por José Feitor, Luís Henriques e Ricardo Castro, a Raia – Tráfico de edições teve a sua primeira edição em Outubro de 2017, no mesmo lugar onde este ano volta a realizar-se. Nas bancas espalhadas pelos dois andares deste espaço cooperativo, predominavam os fanzines, os livros, os objectos editoriais de difícil classificação, as artes gráficas. Discos de pequenas editoras, ou em auto-edição, livros usados, pins, posters e outros objectos feitos à mão também se encontravam nos Anjos 70, num alegre convívio entre criadores que produziam o seu próprio trabalho em múltiplos e o vendiam directamente aos consumidores, sem intermediários. Era este o impulso da Raia, um espaço de fronteira não-geográfica, marcando um lugar à margem dos espaços comerciais normalizados sem nenhum complexo de pequenez.
A essa primeira edição, seguiram-se mais três, notando-se um aumento do número de participantes e refinando-se o cuidado na programação que envolvia as bancas. Concertos, oficinas para os mais novos, sessões musicais com DJ, exposições. Os catálogos publicados nas últimas edições desta feira registavam os participantes e a programação para memória futura, desenvolvendo temas associados a uns e a outra, ou não fosse a Raia um lugar para pensar os processos da edição, da impressão e da circulação de conteúdos nesta era onde tudo parece acessível e onde, afinal, «é preciso estar atento e forte», como cantavam os Doces Bárbaros, para não perder o essencial, o que nos questiona, o que pode criar novos gestos com significado.
Herdeiros da Laica
Actualmente, a Raia é uma das várias feiras organizadas em diferentes cidades do país onde circulam objectos editoriais, gráficos e artesanais de diferentes tipologias. Como quase todas essas feiras, também esta tem na sua linhagem a Feira Laica, que realizou 21 edições ao longo de oito anos, quase todas em Lisboa (mas com algumas saídas), terminando em Dezembro de 2012. No caso da Raia, essa linhagem é, digamos, directa, uma herança incontestável: não só José Feitor foi um dos fundadores da Feira Laica (com Marcos Farrajota), como boa parte dos participantes mais assíduos transitaram desse outro espaço.
Quando a Feira Laica fez a sua primeira aparição, em 2004, no espaço da Junta de Freguesia de S. Mamede, em Lisboa, este universo editorial autónomo e afastado dos radares comerciais e generalistas já era pujante e nele se reconheciam muitos caminhos, alguns antigos, desde fanzines que vinham do tempo das fotocópias, como o Mesinha de Cabeceira, a exposições colectivas e mais ou menos anárquicas que foram juntando vários ilustradores – o próprio José Feitor, mas também André Lemos, Filipe Abranches, Júcifer, João Maio Pinto, Mulher-Bala ou Bruno Borges – em sessões de improviso, livros auto-editados, cartazes e serigrafias. Pelo meio, houve presenças de vários autores estrangeiros, muitos trazidos através de contactos que também envolviam a Bedeteca de Lisboa, antes de a Câmara Municipal da capital ter decidido descontinuar a sua programação, votando ao esquecimento um trabalho de muitos anos e com resultados visíveis, ou que resultavam da sua participação em edições em parceria com projectos portugueses, como aconteceu com as serigrafias de Gianluca Constantini ou Aleksandar Zograf feitas com o atelier Mike Goes West, ou com os muitos autores do catálogo da Chili Com Carne que passaram por Portugal. As coisas não nascem de geração espontânea, já se sabe, e a Laica também teve as suas heranças. Quando anunciou a sua última edição, nasceram novas feiras do género, com maior ou menor regularidade, e tornou-se claro que espaços organizados e geridos colectivamente seriam privilegiados para mostrar ao público interessado o que se andava a passar no meio (ou nos meios, porque também aqui predomina a heterogeneidade), para vender directamente as edições e outros objectos e para criar uma programação relacionada que vincasse este reclamar do fazer sem intermediários, do aprender com os outros, do ocupar os espaços onde é possível encontrar interlocutores.
Sobre a herança da Feira Laica, José Feitor reconheceu à Blimunda a sua importância: «Não querendo puxar dos galões, diria que a Feira Laica criou um modelo de feira de edições que, consciente ou inconscientemente, acabou por ditar muito do que hoje se vê em feiras semelhantes. É claro que a Raia tem identidade própria e os tempos são outros, mas a herança é inegável. Fiquei cheio de orgulho, aliás, quando soube que o Tenderete, de Valência, uma das maiores feiras ibéricas do género, foi criada por inspiração direta da Laica (o Martin Lam visitou-nos várias vezes e já o admitiu).»
Raia reduzida
A próxima edição da Raia não foge à situação que atravessamos. Haverá menos bancas, para cumprir todas as regras definidas pela Direcção Geral de Saúde e evitar o excesso de pessoas num espaço delimitado. Como nos disse José Feitor, «até aqui temos aceitado inscrições, mas nesta edição, devido a todas as limitações (nomeadamente no número de bancas disponíveis), convidámos apenas os feirantes que participam desde o início, ou seja, os colaboradores desde a primeira hora. Foi uma decisão difícil, mas não tivemos outra opção.»
Apesar das limitações, a lista de participantes é representativa dos projectos e criadores que têm animado todas as realizações da feira. Dos áudio-livros da Boca aos cartazes da Oficina Arara, passando pela Chili Com Carne, Imprensa Canalha, Oficina do Cego, Homem do Saco, Umbra Edições ou Xerefé, são mais de trinta as chancelas, projectos, editoras, autores e colectivos cujos trabalhos podem ser vistos e comprados nos Anjos 70.
Na programação paralela à feira propriamente dita, haverá uma exposição do trabalho gráfico de Filipe Abranches, autor do cartaz desta edição, vários momentos de animação pensados para as crianças e animação musical a cargo do Presidente Drógado e de Zé Vadio.
Esta edição da Raia – Tráfico de Edições e Afins esteve para acontecer em Novembro de 2020, esse ano que o vírus fez por apagar das nossas vidas. Para José Feitor, que mantinha algumas cautelas no dia em que falou com a Blimunda, «se realmente acontecer, será um feito notável, uma vez que estamos em Junho e a feira devia ter acontecido há sete meses…» Se nenhuma nova decisão governamental ou municipal alterar as regras do jogo, o próximo fim de semana será o momento certo para (re)conhecer a vitalidade daquilo a que poderíamos chamar cena editorial independente, com todas as cautelas que etiquetas deste género exigem. Na sua maioria, os livros, discos, cartazes e outros objectos que estarão à venda na Raia não se encontram em qualquer espaço comercial e se o presente é sempre demasiado cedo para afirmações de carácter histórico, talvez o futuro confirme que é em espaços como este que vamos encontrando algumas das mais interessantes criações editoriais que se vão fazendo por cá.