Que mistério tem Clarice?
Entre cartas, recados e postais, a correspondência entre escritores abre as portas para outras leituras das obras literárias que conhecemos e dá acesso a um mundo íntimo, de confissões e desabafos, como nesta carta onde Caio Fernando Abreu fala sobre Clarice Lispector.
A revista brasileira Prosa Verso e Arte publica uma carta de Caio Fernando Abreu para Hilda Hilst. Na epístola, datada de 29 de Dezembro de 1970, Caio Fernando Abreu conta como conheceu Clarice Lispector, numa sessão de autógrafos, e descreve de modo íntimo a intensa impressão que a autora de A Hora da Estrela lhe provocou:
«(…)De repente fiquei supernervoso e saí para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: — “Fica comigo”. Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos states) e você.
Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre o Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir.
(…)
Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa.»