Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Setembro 2021

Pão Seco
Muhammad Chukri
Antígona
Tradução de Hugo Maia

Num registo assumidamente autobiográfico, o escritor marroquino Muhammad Chukri regista em Pão Seco o percurso inicial da sua vida, num registo tão duro como honesto que não precisa de encómios para figurar entre os grandes livros da literatura universal.

Durante muitos anos afastado do cânone literário em expressão árabe, Muhammad Chukri anota neste seu primeiro livro (publicado em 1973, com tradução de Paul Bowles) todos os motivos desse afastamento, ainda que em momento algum se lhe refira ou o antecipe. Pão Seco, traduzido do árabe por Hugo Maia, é um registo memorialístico e profundamente honesto sobre a vida do próprio escritor marroquino, fragmentário no modo narrativo, pouco preocupado com a cronologia e profundamente atento às convulsões emocionais e psíquicas que vão atravessando e movendo os gestos do narrador.

O texto de Chukri começa com um funeral, o do seu tio, e há-de ter a morte a rondar quase todas as suas linhas. Segue-se a migração da sua família para Tânger, fugindo da fome que arrasava a região do Rife e arrastando a sua infância para uma sucessão de maus-tratos, miséria e uma necessidade crescente e indómita de viver de cabeça erguida. Num ritmo caótico, assente numa escrita que muitas vezes se aproxima de um diário, ainda que tenha nascido anos depois dos acontecimentos relatados, Chukri faz desfilar o seu quotidiano, mantendo em constante pano de fundo o registo emocional que o acompanha. A relação com o pai, marcada pela violência e descambando em ódio, é um dos motores desse registo e é a partir dele que vão sendo declinadas outras emoções, outros pensamentos, de um intenso sentido de justiça que sai do foro individual e se alastra à situação política de Marrocos e à ocupação do Protectorado Espanhol, à ideia de sobrevivência a todo o custo.

Este é um livro duro, sem floreados nas descrições nem misericórdia no registo das misérias humanas, sejam elas as que derivam da desigualdade social em diferentes dimensões, sejam as que decorrem da nossa intrínseca condição de bichos vivos, com um corpo, os seus fluidos e a sua inevitável decadência. Chukri é ainda uma criança quando ganha consciência plena da brutalidade do seu pai:

«O meu irmão chora, contorce-se com dores, chora por pão. É mais novo do que eu. Choro com ele. Vejo-o acercar-se dele. O monstro acerca-se dele. A demência nos olhos. As mãos quais tentáculos dum polvo. Ninguém o consegue deter. Sonho que peço ajuda. Monstro! Demente! Alguém o detenha! Num ataque de fúria, o maldito torce-lhe o pescoço.» (pg.10)

À sua volta, a brutalidade já era uma constante, sentia-se na justiça popular, na repressão dos soldados a soldo de Espanha, na precariedade do trabalho e sobretudo na fome, omnipresente. Com a violência paterna, Chukri parece despertar para tudo isto, fazendo da enorme ferida emocional que será a raiz do seu trauma um filtro para ler o mundo e uma ética para nele sobreviver.

Ao longo dos treze capítulos de Pão Seco, acompanhamos o crescimento de Chukri e os seus múltiplos modos de ganhar algum dinheiro, que passam por trabalhos em cafés ou no mercado, sempre precários, sempre em regime de exploração, mas também por pequenos furtos, contrabando, prostituição. Neste registo está parte da dureza do romance, mas é no pensamento do narrador, por vezes caótico, outras vezes profundamente consciente, mas sempre registado com afinco de quem não pode dar-se ao luxo de perder o que quer que seja, que está o âmago deste texto.

Na prisão, depois de ser detido na companhia de um amigo e duas prostitutas, Chukri depara-se com uma revelação que, talvez pela primeira vez no seu breve percurso biográfico, não convoca a violência, e é possível que seja essa característica a fazer dela uma revelação com peso de epifania. Os versos que o seu companheiro de cela vai decifrando para passar o tempo não são apenas a poesia e a sua musicalidade, são o mistério da leitura e da escrita a surgir, de repente, como possibilidade de decifrar o mundo. É esse o passo que Muhammad Chukri dará em seguida, no livro e na sua vida. Aprendendo a ler e a escrever aos 21 anos, o autor começa assim a sua jornada em direcção à criação de uma obra que haveria de fincar os pés na literatura universal, mesmo que o cânone em língua árabe a tenha tentado manter à distância. Aparentemente falho de esperança, algo que transborda de todas as linhas deste romance, Chukri revela-se, afinal, um autor que acredita que as coisas acabam sempre por mudar, não porque haja alguma espécie de ordem universal e invisível que as encaminhe no bom sentido, mas sim porque a intervenção dos homens e mulheres que vão sofrendo na pele as asperezas do mundo acabam por encontrar a força e o modo de alterar pelo menos parte daquilo que parecia destino. Que essa crença surja da escrita, e inevitavelmente dessa primeira revelação perante a força de letras riscadas ou impressas num papel, confirma à posteridade a grandeza literária de Muhammad Chukri.

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