Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Outubro 2021

Palácios e alçapões

Herança
Vigdis Hjorth
Livros do Brasil
Tradução de João Reis

Conta Cícero que o poeta grego Simónides terá criado a técnica memori loci a partir de uma catástrofe num banquete. O método de ordenar a memória a partir das imagens captadas terá permitido a Simónides identificar os corpos das vítimas a partir dos lugares onde estavam sentados. Independentemente do valor factual ou lendário da referência de Cícero, feita na sua Oratória, a história prevaleceu e foi ganhando ramificações ao longo dos séculos, permitindo uma vasta bibliografia sobre os Palácios da Memória e a sua suposta infalibilidade, como se a memória fosse um arquivo no qual podemos deambular, consultando as gavetas e os documentos que ordenadamente se apresentam para que possamos ilusoriamente reconstituir a nossa história. Mais certeiro seria convocar a imagem do alçapão, que não abre quando desejamos e que pode tirar-nos o chão quando menos precisamos de quedas. De resto, não há ordem nem arrumação, não há certezas absolutas sobre registos factuais e imaginação e não falta a insegurança permanente sobre aquilo a que nunca mais acederemos, nem o impacto dos momentos em que uma lembrança cuja existência era desconhecida surge repentinamente por entre as outras.

O romance da norueguesa Vigdis Hjorth não fala em Palácios da Memória, mas a sua narrativa progride nessa deambulação necessariamente desordenada pela mente de uma narradora que tenta encontrar a solidez possível numa história que a cada passo ameaça ruir – a sua história.

Bergljot vive há vários anos afastada da família (mãe, pai, duas irmãs mais novas e um irmão mais velho), mantendo os contactos reduzidos ao mínimo essencial e, preferencialmente, por via telefónica. Quando os pais decidem antecipar o testamento e dar às duas filhas mais novas as casas de férias que possuem, dando a Bergljot e ao irmão uma compensação monetária claramente desvalorizada, inicia-se um conflito que não é tanto sobre valores imobiliários e heranças, mas antes sobre o passado e as muitas tentativas, agora vãs, de o ignorar.

Com avanços e recuos cronológicos que aproximam a narração de um solilóquio, estruturado a partir dos movimentos necessariamente desordenados da consciência da narradora, Herança percorre as memórias de Bergljiot e confronta-as com as do seu irmão mais velho, um embate que fará nascer novas memórias, recuperadas com a violência que tantas vezes não se adivinharia no processo. Antes disso, já as lembranças indesejadas tinham começado a assomar, trazendo as revelações que tornaram inaceitável o convívio entre a narradora e a família. Ao longo do texto, essas lembranças encontram o seu lugar na ordem frágil dos acontecimentos, conferindo sentido ao que parecia ilógico.

A escrita de Vigdis Hjorth assenta num registo na primeira pessoa, colocando na voz da narradora a responsabilidade de perseguir os seus próprios pensamentos, dando-lhes a coerência narrativa que os pensamentos tendem a não ter. Nesse trabalho, destaca-se um sentimento de honestidade, enfrentando as indecisões, os maus pensamentos e o desconhecido de um modo que não teme as consequências do que se vai escrevendo. Ou que teme, por vezes, mas avança, ainda assim. A Herança que dá título ao romance vai-se revelando imaterial, cada vez mais longe das casas de férias ou das compensações monetárias, cada vez mais perto desse novelo de memórias que são, afinal, as fundações da narradora – por mais que se mostrem frágeis ou passíveis de ruína. Talvez haja, então, um palácio nesta história, mais próximo de uma casa desordenada e com algumas portas definitivamente trancadas, mas erigido nessa nobreza única que deriva de sabermos quem somos, independentemente dos alçapões em que nos deixamos cair. 

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