Casa da Andrea Andréa Zamorano 28 Fevereiro 2025

Paixões

            Lúcia era gorda. Até aí, nenhum problema. Querendo ser simpáticos, os colegas mais antigos da repartição onde trabalhava diziam que era rechonchudinha. Os modernos que ignorassem as convenções da sociedade. Tudo sem ela perguntar. Porém, nem os colegas do passado, nem os do presente, incomodavam-na. Lúcia vivia os dias com satisfação e terminava o seu expediente com um éclair recheado com creme de pistache, na pâtisserie rococó do respeitável chef luso-francês Pierre Manuel, localizada na esquina do seu trabalho. 

            O chef estudou nas renomeadas escolas de haute culinária de Paris e conseguia forjar felicidade a partir de açúcar, ovos e manteiga (aliás, muita manteiga). Lúcia era a sua cliente favorita.

            Não raras vezes, Pierre Manuel mandava um colaborador levar um pratinho com um choux recheado com creme de café ou um babá ao rum com confit de laranja e limão verde. Ela agradecia com um gesto de cabeça, agarrava o doce com a ponta dos dedos, polegar e indicador, elevava-o até à boca, dava uma dentadinha bem pequena. Fechava os olhos e passava a ponta da língua no lábio superior, sem deixar escapar nenhuma pitada, e procurava Pierre Manuel que, de longe, observava fingindo não prestar muita atenção. 

            Quando estava prestes a partir, ele aproximava-se. Ela voltava a sentar-se à mesa, indicando a cadeira vazia. Ele se sentava. Conversavam. Lúcia fazia sinceras considerações sobre a delicadeza da criação. Era vez de Pierre Manuel se deliciar.

            Logo pela manhã, um sorriso largo enchia as maçãs do rosto de Lúcia quando ao espelho, ela dava uma voltinha, depois virava-se outra vez para ver como assentava a roupa nas suas curvas. Apanhava sempre o mesmo ônibus. A paragem final era próxima à confeitaria, mas Lúcia preferia descer na anterior para poder passar pela porta da loja e admirar a vitrine de Pierre Manuel, que há horas investigava e testava uma sobremesa ainda mais elaborada para impressionar o refinado palato de Lúcia no final da tarde. Não falhavam: ela com o imprescindível éclair de pistache e Pierre Manuel com a elaboradíssima iguaria. Seguiram-se longos minutos de trocas de apontamentos culinários e sorrisinhos entre o chef e a funcionária administrativa. 

            Numa dessas manhãs, em que Lúcia virava-se e tornava-se a virar ao espelho, confirmou aquilo que já vinha desconfiando e que os colegas da repartição comentavam considerando elogios: as suas curvas estavam menos volumosas. Ficou parada de pé pensando na sua rotina e, claro, nos docinhos e em Pierre Manuel. Lembrou-se que, na última semana, devido a uma greve dos trabalhadores dos transportes públicos, foi obrigada a esperas demoradas nas filas dos insuficientes transportes alternativos facultados pela prefeitura e fez longas caminhadas para chegar e voltar do trabalho. 

            Pierre Manuel também reparou no dólmen mais largo, no avental que levava mais uma volta ao amarrar. No princípio, também não deu importância, trabalhava demais, dormia pouco e alimentava-se mal. Sabia. 

            A greve durou poucos dias, Lúcia regressou aos percursos originais e, estranhamente, continuava a emagrecer. No seu ritual diário com a porta do espelho do armário, a roupa sobrava nas ancas, dava para fazer uma prega de quatro dedos de cada lado. Preocupada com o súbito emagrecimento, após o éclair, Lúcia pediu um saint honoré e mil-folhas antes mesmo que Pierre Manuel enviasse a mais recente invenção. 

            Um colaborador correu para avisar o chef, mas ele se antecipara. Juntou a obra ao pedido de Lúcia, que comeu os três com afã. Detendo-se somente naquele criado especialmente para ela. Repetiu os gestos, observou o docinho, agarrou com a ponta dos dedos, lambeu o lábio e elogiou o trabalho quando Pierre Manuel apareceu, mas o vestido de Lúcia estava mais solto, pelo decote ele viu o osso da sua clavícula. Despediram-se logo em seguida e o que quer que estivesse a acontecer, era por sua culpa. Concluiu o chef.

            Pierre Manuel verificou os testes na cozinha, revisou as fórmulas, calibrou milimetricamente a balança, os açúcares. Dormia ainda menos, trabalhava mais. As mangas dobradas do jaleco agora precisavam ser enroladas até quase aos ombros.

            Lúcia passou a frequentar o estabelecimento também no horário de almoço e a levar uma caixinha de macaron para comer no lanche da tarde. Em todas as idas, conversava com Pierre Manuel, mas daquela vez em que ele lhe entregou um embrulho com pastéis de nata acabados de assar, Lúcia não pode deixar de reparar nas roupas a escorregarem pelo corpo esquálido do chef. Então concluiu que o quer que estivesse a acontecer, era por sua culpa.

            Ele esforçava-se mais e mais para se superar e ela não parava de emagrecer. Não era justo. Os colegas teciam constantes observações quanto aos seus traços, sempre teve um rosto tão bonito, estava mais fino, a cinturinha vincada. Lúcia zanzava pela repartição. Passou tarde a mover pastas de um lado para o outro na secretaria, sem conseguir se concentrar até que decidiu: nunca mais comeria nenhuma das criações de Pierre Manuel. Estava tomada pelo medo de que ele desaparecesse. 

            Naquele mesmo final de tarde, entrou na confeitaria, com um resto de esperança, talvez pudesse não tomar uma decisão extremada, no momento em que pedia o seu habitual éclair, Pierre Manuel, lá do fundo do balcão, esticou o braço que mais parecia um fiapo e sorriu um sorriso quase invisível. Ele virou-se com lentidão para buscar o que criara. Lúcia saiu porta afora antes que lhe servissem.