Os Reis do Mar
David Machado
Editorial Caminho
Não te afastes foi a primeira novela juvenil de David Machado. O tema poderia bem ser o da amizade que salva. O contexto, o de uma catástrofe natural: um furacão. Uma tragédia interior, outra exterior, um desafio transformador, um elemento inverosímil.
Talvez lhe faltasse uma maior imersão na identidade de personagens juvenis, talvez alguma economia descritiva, se pensarmos a partir do leitor ideal e não do leitor adulto.
Porém, esses laivos de desequilíbrio esfumaram-se neste segundo título da trilogia do Furacão. Os Reis do Mar é uma novela juvenil madura. Aqui a categoria juvenil não é de somenos importância, por ser tão pouco problematizada e tão menosprezada, nomeadamente por parte da academia literária.
O que esta narrativa oferece é uma continuidade temática da primeira, mas mais fluida e com mais camadas. As relações entre as personagens evoluem a partir de um maniqueísmo seguro, em que Samuel e Rá são cúmplices de aventuras secretas, Kaya é a paixoneta de Rá, Manu, Franco e Isaac são os bullers da escola e Benício é um pirata perigoso e misterioso. Porém, ninguém é só uma imagem ou uma ação. Há biografias por revelar, valores, emoções, experiências que se partilham, voluntária ou involuntariamente.
Acontece que, no momento em que Samuel inicia a narração, este ponto de partida já ruiu e só nós, leitores, não sabemos até que ponto, como e porquê.
A voz do narrador é desfasada do tempo da ação e é esse diálogo que permite a transformação, a construção da história, a necessidade de lhe dar forma e nome.
Nessa linha, David Machado escolhe um leit-motiv que regressa a espaços: Samuel não consegue encontrar o herói daquela aventura. Do seu questionamento a reflexão evolui sempre para juízos afetivos sobre as outras personagens e sobre si próprio.
Temos então uma teia de referências narrativas que se lançam em busca de um texto orgânico, coerente e coeso. Quem é o herói? O mais corajoso? Quem vive a experiência mais traumática? Quem não procura protagonismo e a ele não pode fugir? Será o herói um indivíduo ou o grupo?
E a aventura planeada e alimentada por narrativas fantásticas? Remete para tantas experiências semelhantes de várias gerações de leitores, pisca-lhes o olho, legitima a imaginação, o sonho, a crença no infinito de possibilidades. Se existe um multiverso e uma casa perdida algures no espaço sideral, tudo é possível e tudo será congeminado para a encontrar.
Finalmente, o confronto com os limites da realidade, a perda da inocência, os grilhões do crescimento. Não pela perda mas pelo desconcerto da mudança. Ganha-se consciência e ali reside o momento do não retorno. Ao contrário de Peter Pan.
David Machado oferece uma experiência de crescimento, começando por alimentar a ilusão da ingenuidade para a desmontar, passo a passo. Fá-lo mantendo a identidade literária que o caracteriza: a poética da interioridade.
Esta é uma novela juvenil por isso: porque dialoga com um tempo biográfico a partir de dentro, com muito respeito pelas ilusões e dores que o medo põe às costas de cada um. Poderíamos terminar dizendo que é uma história de recomeço, de perda do ninho, de refugiados. Poderíamos acrescentar que há vilões e heróis, amizade, solidariedade e a descoberta do primeiro amor. Mas seria pouco.