Ofensas e liberdades
O podcast Perguntar Não Ofende reúne quatro cartoonistas portugueses num debate essencial sobre a liberdade de expressão.
No início deste mês, a ilustradora e cartoonista Cristina Sampaio assinou um cartoon sobre o assassinato de um jovem, Nahel, pela polícia francesa, um crime justificado pelos agentes em causa com o perigo de vida, versão dos factos que seria desmentida graças à filmagem em vídeo da operação stop que realizavam. Na imagem criada pela cartoonista portuguesa, intitulado “Carreira de Tiro”, um agente dispara com dedicação para diferentes alvos e, no fim, verifica-se que os alvos têm tantos mais tiros acertados quanto mais escura é a silhueta que os preenche. Integrado no programa Spam Cartoon, um comentário sobre a actualidade noticiosa que se faz a partir do cartoon, o trabalho de Cristina Sampaio foi alvo de uma queixa-crime apresentada pelo Sindicato Nacional da Carreira de Chefes (SNCC) da PSP, que interpretou o cartoon como sendo referente à polícia portuguesa. Não era, e isso é claro na imagem, mas a rapidez com que o SNCC reagiu merece reflexão, até porque o debate sobre o racismo estrutural nas forças de segurança está longe de ter um fim.
O mais recente episódio do podcast Perguntar Não Ofende, de Daniel Oliveira, tem como convidados Cristina Sampaio, André Carrilho, António e Nuno Saraiva, todos criadores de cartoons. Para além da discussão sobre este episódio recente envolvendo o Spam Cartoon, os quatro autores e o anfitrião percorrem outros momentos em que um cartoon foi rastilho para debates acalorados, como aquele trabalho de António, num Expresso de há 31 anos, que colocava um preservativo no nariz do Papa João Paulo II, o que gerou um abaixo-assinado com milhares de subscrições, ou o mais recente episódio de um cartoon criado por um professor a partir do rosto do primeiro-ministro português, que levou a uma discussão sobre o racismo que, para algumas pessoas, era notório na exacerbação de certos traços fisionómicos de António Costa, sendo que para outras era apenas uma caricatura. O resultado é uma conversa bem argumentada sobre a liberdade de expressão, o humor, o direito à ofensa e os mecanismos sociais, culturais e legais, nem sempre bem compreendidos em democracia, que envolvem todo este debate.