Crítica Sara Figueiredo Costa 9 Dezembro 2024

O passado é sempre agora

O Abismo do Esquecimento
Paco Roca e Rodrigo Terrasa
Ala dos Livros
Tradução de Ricardo Magalhães Pereira

Fazer as pazes com o passado é uma expressão que se escuta com frequência, sobretudo proferida por responsáveis políticos que assumem o passado como uma espécie lugar estrangeiro (provavelmente onde as coisas se fazem de modo diferente, nas palavras do romancista inglês L. P. Hartley). Ora, o passado não nos é estranho, pelo contrário. Se sentimos necessidade de o invocar, é porque lá temos ainda raízes, razões, coisas por perceber, e isto até em passados que nos são geracionalmente anteriores. É essa a ideia estruturante que atravessa O Abismo do Esquecimento, de Paco Roca e Rodrigo Terrasa, uma narrativa em banda desenhada sobre os “desaparecidos” do franquismo, em Espanha, eufemismo para os tantos que morreram às mãos do Estado e cujos corpos nunca foram devolvidos às famílias. 

Em Espanha, a Lei da Memória Democrática foi aprovada em 2020, permitindo a exumação e o novo enterro das vítimas do franquismo, bem como a criação de um banco nacional de ADN que contribua para que conheçam as identidades dos tantos corpos por identificar. Depois disso, a sua aplicação efectiva teve avanços e recuos. Muitos responsáveis políticos, alguns com ligações históricas ou ideológicas ao regime de Franco, tentaram que travar processos de exumação, cortando fundos ou argumentando que o passado era coisa para se deixar sossegada. Neste livro, Roca e Terrasa mostram que essa recusa de convocar o passado não tem como contrariar a vontade férrea de muitos dos descendentes desses assassinados pela polícia franquista. A história que aqui contam, e para a qual convocam pessoas reais, documentos e factos, é a de alguns desses descendentes, mas também a das próprias vítimas, trazidas para o tempo presente através dessa ferramenta absolutamente extraordinária que guardamos enquanto espécie: a capacidade (talvez seja mais correcto chamar-lhe necessidade) de contar histórias. A persistência de Pepica Celda, filha de uma das vítimas cujo corpo a família não pôde velar, assume nesta banda desenhada o duplo papel de exemplo, quase uma sinédoque humana representando todos os descendentes que não sabem do paradeiro dos seus familiares assassinados, mas apresentando também a sua história única, pessoal, onde podemos reflectir-nos, mesmo não partilhando um percurso que se assemelhe. 

Se Pepica Celda, e vários outros descendentes dos mortos enterrados no cemitério de Paterna, na região de Valência, puderam ter esperança de identificar os restos mortais dos seus familiares, isso deveu-se em boa medida a Leoncio Badía, um republicano que, caído em desgraça pelos seus ideais, recebeu do regime de Franco a missão, dada como castigo, de enterrar em Paterna os que o mesmo regime ia assassinando. Isto já depois de terminada a Guerra Civil, o que ainda contriuiu mais para que destas vítimas não se quisesse falar. Badía, outra figura central nesta banda desenhada onde tantas vozes tomam a palavra, assumiu a responsabilidade de fazer os possíveis para que os corpos que enterravam não caíssem no esquecimento, pelo que foi registando lugares de enterramento, recolhendo indícios – um pedaço de roupa, botões, madeixas de cabelo – que permitiram identificar algumas vítimas. E foi por causa de uma madeixa de cabelo de José Celda que Pepica nunca perdeu a esperança de reencontrar o corpo do pai. 

A história de O Abismo do Esquecimento confirma que o passado, em boa verdade, talvez não exista, pelo menos com esse sentido de um tempo à parte, afastado do que somos, apenas um eco. Ao longo de quase trezentas pranchas, o eixo do tempo vai-se deslocando, não apenas entre o período do franquismo e o presente em que uma equipa de antropólogos forenses escava a vala 126 do cemitério de Paterna. O tempo recua ainda mais, convocando os primeiros enterramentos humanos, as histórias narradas por Sófocles e Homero (estas assumindo uma vertente gráfica marcadamente diferente, despojada, os traços quase dourados sobre um fundo preto a remeterem para uma ancestralidade que ainda assim continua a ser-nos presente), essa necessidade humana de lidar com a consciência da finitude. Recua de tal modo, e de tal modo avança, que se torna claro que é um mesmo tempo: precisamos, como sempre precisámos, de confirmar os nossos mortos, de lhes aceitar o fim, de saber como guardar o que deixaram, e o acto de narrar faz parte desse processo. 

Em pranchas marcadas pela combinação da habitual linha clara de Paco Roca e de tons sépia que não se limitam aos episódios passados, O Abismo do Esquecimento é uma homenagem aos que caíram às mãos de Franco, mas também aos que guardaram as histórias e as memórias (alguns assumindo essa tarefa ao mesmo tempo que as vítimas eram fuziladas, como Leoncio Badía) e aos que, não sendo herdeiros directos dos que partiram, ainda assim persistem no direito à memória, como os elementos da equipa forense retratada neste livro. De certo modo, também Paco Roca e Rodrigo Terrasa se integram nesse grupo, ainda que não sejam personagens do livro. Fazer as pazes com o passado nunca é esquecê-lo, por mais que haja quem se empenhe em querer fazer desse esquecimento regra. Neste livro, uma bela elegia em banda desenhada que acaba por ser também ode à memória e à sua condição de matéria presente, reconstrói-se um pouco do passado menos querido de Espanha, mas faz-se sobretudo justiça e de um modo que talvez seja o que melhor serve à posteridade: contando as histórias que ficaram por contar.

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