Destaque Sara Figueiredo Costa 24 Setembro 2021

O mapa sem caminhos de Roger Ballen

Até ao próximo dia 10 de Outubro, o Centro Português de Fotografia acolhe a exposição My Mind Is a Cage, de Roger Ballen. Nas celas da antiga Cadeia da Relação, no Porto, o fotógrafo norte-americano mergulha na sua própria mente, expondo os cortes, as cicatrizes e os abismos que são, afinal, património comum da humanidade.

I. Coordenadas

No átrio circular que dá acesso às celas que compunham a Cadeia da Relação, no Porto, inicia-se o percurso pelo trabalho de Roger Ballen na Enxovia do Sr. de Matosinhos, a segunda cela à direita. O lugar não é um pormenor. Foi o próprio autor a querer expor algumas das suas séries nesta antiga prisão e a meia centena de obras a preto e branco que aqui podem ser vistas foram dispostas em função do espaço e da possibilidade de dele extrair significados, sensações e relações com as imagens.

Com um percurso artístico que já conta cinco décadas, Roger Ballen começou por trabalhar em torno da fotografia documental, avançando, na década de 90 do século passado, para um registo a que chamou «ficção documental». Foi neste território de trabalho que desenvolveu uma gramática muito marcada, reconhecível e absolutamente inquietante. Trabalhando com pessoas que vivem nas margens mais recônditas e miseráveis da sociedade, sobretudo na África do Sul, lugar onde grande parte das suas fotografias das últimas décadas foi feita, Ballen cria personagens e cenários que perturbam essa fronteira que tanto prezamos entre realidade e ficção.

Noutra das celas, a Enxovia de Santa Teresa, rebaptizada como Room of the Mind nesta exposição, vemos as várias fotografias que pertencem à série «Asylum of the Birds», realizada numa casa decrépita, algures em Joanesburgo, habitada por pessoas e animais. As condições de salubridade são escassas, a miséria é notória e tudo isso se vê nas fotografias de Ballen, mas não é o registo da pobreza ou a denúncia de uma falha social que atravessa estas imagens. Trabalhando com os habitantes da casa, o fotógrafo criou cenários, encenou poses, integrou elementos que são parte do quotidiano de quem ali vive. E se a sujidade, os objectos partidos e as aves que nem sempre ficam paradas onde o fotógrafo as quereria provocam um primeiro impacto desafiador, colocando o espectador num limbo de desconforto, é o modo como estes elementos e as figuras humanas que com eles interagem se relacionam em cada composição que verdadeiramente abala quem enfrenta cada uma destas imagens.

II. Reflexos e miragens

Num breve filme disponível nesta sala, Ballen deixa claro que o que regista está para além do visível: «Quando crio fotografias, muitas vezes viajo às profundezas do meu interior, um lugar onde os meus sonhos e muitas das minhas imagens se originam. Vejo as minhas fotografias como espelhos, reflectores, conectores que desafiam a mente.» De certo modo, é como se as imagens do fotógrafo sofressem, no processo de ganharem materialidade no papel onde os sais de prata as fixarão, duas revelações. E se uma delas se explica pelos processos químicos que permitem que uma imagem se registe em negativo, primeiro, e depois em positivo no papel, a outra não se oferece a explicações. Os rostos que por vezes têm máscaras sobrepostas, os membros em posições inesperadas, a presença de desenhos nas paredes, também eles rostos, quando não animais, todos esses elementos que se combinam de modos improváveis abrem um território minado de interpretações onde a psicanálise é uma bengala inevitável – e útil para estabelecer um pensamento que nos permita navegar por estas celas sem perder o pé –, mas onde não há espaço para certezas, lições de moral ou estéticas enquadradas e definitivamente arrumadas. Como acontece nos sonhos que Ballen tanto preza, há que avançar e ir vendo aonde nos leva o que tanto pode parecer lógico como absurdo. E talvez seja melhor avançar pelo meio de tanto material inconsciente com a consciência avisada do óbvio: destas celas, não há como sair.

O efeito do lugar faz-se sentir com mais intensidade à medida que se progride no espaço. As imagens de Roger Ballen são desconcertantes, por convocarem para uma mesma composição elementos que não quereríamos ver juntos – como a fealdade de um par de pés sujos e feridos envolvendo o focinho ternurento de um cachorro – ou por nos empurrarem para lugares que desconhecemos, mas cuja existência intuímos dentro da nossa própria cabeça. Talvez pelos dois motivos. À volta, as grades da antiga cadeia, cá dentro, os mundos de Ballen em diálogo imparável com os mundos de quem lhe observa as criações fotográficas. A miséria e o desamparo convivem com poses desafiadoras, os arquétipos de tantos dos nossos medos individuais e colectivos dividem o espaço com gestos quotidianos, cada imagem a fixar-se enquanto possível superação dos limites do corpo e da mente, ao mesmo tempo que se confirma como memento mori, afirmando com estrondo a nossa mortalidade. À medida que esses medos se tornam reconhecíveis, e que neles vamos vendo o reflexo dos nossos próprios, as personagens que nas primeiras fotografias se arrumavam tão facilmente na categoria de pessoas com aparentes desequilíbrios mentais deixam de ser distantes, deixam de ser os outros. Resista-se mais ou menos à identificação, mas torna-se difícil não tropeçar nela e não tardará até que a inquietação comece a fazer nascer a dúvida sobre quão precisa será essa ideia generalizada de sanidade mental que nos rodeia.

III. A estrada sem saída

Poder-se-ia dizer que um dos temas de Ballen é a loucura, se loucura fosse um termo inquestionável. Na verdade, o autor empurra-nos para lugares onde várias ideias de loucura se sobrepõem, mas o seu trabalho não é o de focar o que é estranho ou disparar sobre o que acreditamos ser-nos alheio, colocando a loucura num qualquer espaço exótico com que nos comparamos, sabendo que dele não fazemos parte (ou desejando que assim seja). Pelo contrário, sem rasgos de compaixão nem fronteiras que salvaguardem quem vê, Roger Ballen assume a existência de pensamentos, comportamentos e situações que habitualmente, e de forma superficial, classificamos como loucura, como algo que faz parte de qualquer mente. Se não de modo cabal, pelo menos em potência.

Não há nestas fotografias e nestes filmes qualquer taxonomização de comportamentos. Tudo o que se vê é apresentado como integrando indubitavelmente a mente humana e as suas múltiplas possibilidades de concretização, quer em gestos e expressões corporais, quer em derivas pelo pensamento. De certo modo, o trabalho de Ballen está mais próximo de uma cartografia, mesmo que assumindo a impossibilidade de isolar territórios ou estabelecer regiões absolutamente diferenciadas entre si. É uma cartografia que se entrega à deambulação, explorando os enganos no caminho, as descobertas de pontes que pareciam invisíveis e, sobretudo, a aproximação dos abismos, dos poços disfarçados por entre as rochas, das armadilhas que mapa nenhum parece conseguir registar com precisão.

Na última sala, a Room of Projections, podem ver-se alguns dos filmes de Ballen, um corpus que não é apenas sobre o seu trabalho, sendo parte integrante desse trabalho. No dia da visita que aqui se regista a sala estava fechada – uma avaria impediu a visualização destes filmes no ambiente em que o autor imaginou que eles seriam vistos, no contexto desta exposição. Ainda assim, os filmes estão disponíveis na página de Roger Ballen e o seu impacto, mesmo que longe das grades da Cadeia da Relação, não destoa daquele que as fotografias desencadeiam. Há personagens que se repetem, umas vezes na pele definida por Ballen, outras na sua própria, sem que seja fácil separar uma da outra. É como diz o autor quando tenta explicar o que faz: «Realidade é uma palavra que não tem significado para mim. Prefiro expressar o enigma deste mundo em vez de reflectir sobre a sua natureza fundamental.» É bem possível que esse enigma seja tudo, o que nos rodeia e o que nos povoa a mente de onde não é possível escapar.

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