O Jaime no casamento
Jessica Love
Fábula
É provável que a leitura deste álbum seja completamente diferente para quem conheça o álbum anterior da autora, O Jaime é uma sereia. É aliás um exercício quase impraticável: o leitor que já o leu conseguir colocar-se no lugar de quem não leu. Por isso, nesta leitura, o olhar assume-se condicionado.
A narrativa é singela, roçando num primeiro nível um discurso naïf, quer pelo texto, quer pela representação de alguns momentos na ilustração. Jaime, protagonista de ambos os livros, vai desta feita a um casamento com a avó. Lá encontra Marisol com quem decide explorar um lugar misterioso no jardim da festa. Graças a uma brincadeira com a cadela das noivas a menina suja o vestido e o seu companheiro encontra uma solução original que recupera a ideia, tão cara à infância, do disfarce, do faz de conta através da mudança de visual. Este será aprovado pela avó da menina e a festa prosseguirá em franca alegria.
Acontece porém que o livro é mais do que esta súmula superficial. Em primeiro lugar porque a identidade volta a ser tema e o jogo da transformação repete-se como recurso identitário. Não será de somenos importância que o casamento se dê entre duas mulheres e que a avó de Jaime também se encontre e esteja durante toda a festa com a (presumível) avó de Marisol. Ainda, há que reparar nos detalhes que a ilustração, entre a expressividade de movimentos e padrões, nos oferece. A avó de Marisol troca o boné da rapariga por uma grinalda que lhe coloca na cabeça. Esta grinalda será transferida para a cabeça de Jaime assim que as duas crianças se escapulem para debaixo da mesa. Jaime virá a substituir o vestido da amiga pela sua própria camisa, que ata com um fio e ao qual prende um conjunto de folhas que parecem asas, ou uma estola e que remetem para a sua própria indumentária no álbum anterior.
Há uma clara lógica de continuidade temática neste segundo álbum, agora através de um processo de transferência entre as duas crianças. Até onde podemos ler o tema da identidade de género no livro? – é a mesma pergunta que nos colocamos ao ler O Jaime é uma sereia. Esta dúvida basilar constrói todo um programa estético e ideológico cuja ambivalência sustenta valores e afasta tons panfletários. Todavia, tais vazios narrativos implicam um risco: o de incompletude formal. Neste caso a narrativa resvala para o limite da coerência diegética por ausência de progressão. O lúdico que sustenta a relação entre as personagens não é suficiente para validar o episódio e o subentendido não se chega a apresentar como tema, ao contrário do que acontece em O Jaime é uma sereia. A ilustração mantém o nível expressivo, efusivo, emotivo e sensorial, pelo que a lacuna residirá sobretudo na ideia, que precisaria de mais elementos que consolidassem esta composição.