Nicole Savage e a Missão de Espalhar Amor
Estávamos em 1967, Janis Joplin mudava-se para um apartamento na mítica Rua Ashbury, n.º 635, em São Francisco. E enquanto se encaminhava, com a sua nova banda Big Brother and the Holding Company, para o ano da sua consagração, a jovem Nicole Savage cortava cabelos em Las Vegas, no limiar do deserto.
Penteados nas bailarinas, nas cantoras e nas atrizes que logo encheriam os palcos com pernas, vozes e generosas doses de laqué, faziam Nicole subir e descer os arranha-céus várias vezes. Era verdade que recebia uma boa maquia, contudo sentia que algo lhe escapava na sua jornada.
Nicole era uma excelente cabeleireira (I’m still am, enfatizou). Contou-me que, por vezes, uma inquietação tomava-a e sentia-se melancólica, ficava prostrada contemplando o cume da montanha Sunrise pela vitrine do salão onde trabalhava quando não estava nos hotéis. Era então monopolizada por um questionamento: Seria aquilo a vida? Todos os dias andar num corrupio a preparar mulheres para o deleite dos olhares masculinos?
Nos anos 60, apesar dos vários avanços dos movimentos feministas, grande parte das mulheres ainda tentava se encaixar, ser uma boa esposa, esperar o marido, preparar o jantar ou sonhar com o último modelo de um aspirador de pó, mas não Nicole (e nem Janis Joplin). Nicole casou-se aos 16 anos com um colega do secundário para ser livre. Para sua alegria, não ficaram juntos. Depois de se separar, frequentou uma escola profissional, onde obteve o diploma de colorista — área de especialização no mundo dos cabeleireiros. Tornou-se independente. Sem que se desse conta, exalava os ares transformadores da contracultura.
Uma tarde, o sininho pendurado na porta do salão soou diferente. Três mulheres adentraram, sentaram-se, trataram dos cabelos enquanto conversavam entre elas. Nicole prestava atenção na exuberância. Falavam de um lugar onde as pessoas eram de todas as cores. Segundo Nicole, em Las Vegas só havia gente branca. As pessoas negras estavam confinadas ao Westside — como era designado o bairro-gueto que ficava do lado de lá da linha do comboio — e os asiáticos estavam fadados ao trabalho nas cozinhas. Naquele local novo existia uma ópera, restaurantes fervilhando e lojas alternativas que as três mulheres costumavam frequentar. Era como um sonho, pensou ela.
Nicole abandonou os ideias e as aspirações dos pequenos burgueses, com as quais nunca se identificou, e zarpou para a sua nova vida. Ela e mais cem mil jovens, de todo país, rumaram para o epicentro do mundo naquele ano, a cidade de São Francisco.
Pouco antes do Verão do Amor começar, Scott McKenzie entoava a canção de John Phillips “San Francisco” (Be Sure to Wear Flowers in Your Hair)” que funcionou como uma espécie de hino-chamariz. São Francisco era lugar onde a humanidade se cumpriria: as pessoas gentis trariam flores nos cabelos, ninguém prejudicaria ninguém em nome do quer que fosse, deus seria a natureza, os princípios capitalistas da classe média seriam substituídos pela propriedade comum e o dinheiro incompatível com a felicidade. Homens, mulheres, negros, (e sobretudo) brancos seriam iguais. A paz e o amor os bens supremos. Os “peregrinos” eram atraídos por essa abundância de valores e pela liberdade de serem o contrário dos seus pais. A utopia era hippie.
Nicole estava lá para testemunhar e fazer história. Na altura, vivia em casa de uma senhora que a ajudou e morava por cima de um bar. Mais tarde, iria trabalhar no salão de cabeleireiros mais chique e louco da cidade, frequentado pela nata musical de Haight, onde Carlos Santana e Janis Joplin eram habituais (por mais incrível que pareça). Nicole pontuou que Joplin era muito gentil, e, ao mesmo tempo, uma fire ball. Não gostava de cortar o cabelo apesar de querer estar ali (este episódio ficará para outra oportunidade). O fato é que Nicole estava plenamente integrada naquela nova cultura, tendo encontrado os próprios caminhos.
À medida que os horrores da Guerra do Vietname entravam pelos lares, crescia em parte da população o repúdio à participação americana. Recrutas, cuja média de idade era de 21 anos, eram convocados, em direto e pela TV em rede nacional, em lotarias do medo promovidas como propaganda do governo. Esses filhos da América seriam vistos caindo mortos, mutilados ou desaparecendo com o intensificar dos combates. As contestações espalharam-se pelo país embora pautadas pelos ideais de paz e da não violência praticados por Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. Os hippies abraçaram a causa e promoveram manifestações, acreditando que todos os gestos contavam para pedir o fim da guerra.
Nicole é uma pacifista e num dos concertos promovidos no Verão do Amor, no parque Golden Gate, onde vários grupos se apresentavam gratuitamente expressando o seu antagonismo à guerra (que culminaria no Festival de Woodstock, dois anos depois), Nicole pediu a palavra a um dos organizadores do evento (quero acreditar que foi Allen Cohen, criador e editor do jornal The Oracle, por quem Nicole nutria uma paixão platónica arrebatadora) e diz as seguintes palavras: “Boa tarde. Há alguém que queira ficar nu e ir até à praia comigo?”
Mais de cem pessoas se ofereceram, Nicole criou uma iniciativa chamada Nakeds for peace. Dias depois o grupo se reuniu na praia de Baker para concretizar a ação que seria replicada país afora. Mulheres e homens, de todas as raças, despidos para escrevem na areia o lema Make love, not war.
Como é óbvio, apesar da boa-vontade dos intervenientes (Nicole disse que alguém até disponibilizou um avião para tirar fotografias, não percebi se conseguiram) não foi um projeto fácil de levar a termo, mesmo estando numa praia com uma área demarcada para o nudismo. Nicole e os seus amigos estavam na zona de areia correta porém um fiscal municipal se opunha veementemente à ideia que lhe parecia tresloucada. Ameaçou os participantes que se ultrapassassem a área designada seriam presos e se alguém, não nudista, se opusesse ou apenas reclamasse, a performance pacifista não poderia ocorrer. Nicole me conta (com um sorrisinho matreiro) que os banhistas bandearam-se para o lado dos nudistas. Em celebração, a frase foi escrita.
Inconformado com tal sandice. O fiscal dirige-se a Nicole e indaga porque faziam aquilo? Se era por dinheiro. E Nicole respondeu que sim, era por dinheiro mas o dela. Então sacou, do fundo da bolsa a tiracolo, de um Dharma Dollar que entregou ao fiscal.
Dharma Dollar é a moeda que Nicole criou. Ela mesmo imaginou, desenhou e coloriu. Não tendo uma tradução exata, dharma é uma palavra em sânscrito que está ligada a prestar um serviço ao outro. Aceitar e praticar o seu dharma é o segredo para uma vida plena de conexões com o todo, com o universo. O Dharma Dollar de Nicole vale um coração e um amor. É o dinheiro cósmico do Eterno Estado do Amor. Serve para pagar TODAS, as nossas dívidas do karma — que são as consequências ou a reação do universo ao que fizemos ou não com a nossa vida.
(Precisei de uma pausa para respirar. Me afastei comovida)
Pergunto-me o que andamos fazendo com o mundo e de que outro dinheiro necessitaríamos se puséssemos mais coração no que vivemos, como está consagrado no Dharma Dollar? Ou de quanto Dharma Dollars precisaríamos, ao dia de hoje, para saldar as nossas ações como humanidade? Talvez mais do que em 1967, precisemos recuperar e praticar as aspirações hippies: promover a paz; conservar e preservar o planeta; respeitar as diversidades e, quanto a parte dos alucinógenos, troco o meu quinhão por um bom vinho.
Nicole Savage tem 80 anos, vive ainda em São Francisco, bem perto da praia onde escreveu com corpos nus na areia, no último andar de um apartamento com vista para a ponte Golden Gate. Conhecemo-nos no verão deste ano quando fui visitar uma prima. Tudo o que conto das nossas conversas, não tem qualquer compromisso com a verdade histórica, é apenas a forma como Nicole se lembra da sua vida e como continua a vivê-la. Até hoje, ela distribui os Dharma Dollars a quem precisa deles. Eu recebi dois, um para mim e outro para oferecer a quem eu entenda. Atualmente ela tem poucos fundos para imprimir a sua moeda mas esta semana recebi a notícia que está muito feliz porque conseguiu um patrocinador para apoiar a velhinha hippie que insiste na sua missão de vida, espalhar amor pelo mundo.