Destaque Sara Figueiredo Costa 22 Novembro 2023

Ah! Nana: O rasto de um cometa

O mais recente número especial da revista Métal Hurlant é integralmente dedicado à Ah! Nana, revista francesa feita por um grupo de mulheres que começou e acabou nos anos 70 do século passado e que foi um marco na banda desenhada europeia.

Em 1974, nascia a Métal Hurlant, revista francesa por cujas páginas passaram alguns dos nomes mais importantes da banda desenhada contemporânea, experimentando formatos e linguagens, explorando temas e arriscando no traço e nas cores. A Ficção Científica era marca de água desta revista, onde o género foi sempre abordado de um modo global, político no sentido mais amplo da palavra, por vezes utópico. A associação de dois autores de banda desenhada, Philippe Druillet, Jean Giraud (também conhecido por Moebius), ao jornalista Jean-Pierre Dionnet e ao financiador Bernard Farkas ficou conhecida como Les Humanóides Associés e haveria de dar várias outras cartas no panorama editorial da banda desenhada. Em 1985, depois de ter dado origem a uma versão norte-americana (a Heavy Metal) e de ter acolhido nas suas páginas centenas de autores, muitos deles saltando dessas páginas para uma carreira na publicação regular de banda desenhada, a Métal Hurlant foi obrigada a encerrar. A economia não costuma compadecer-se de projectos editoriais deste género e a atracção de investidores ou empresas cuja publicidade ajudasse a pagar a produção e impressão não foram suficientes. A revista haveria de regressar em 2002, com um número especial, publicando entretanto outros números avulso, sempre anunciando que seriam os últimos, até ao seu regresso recente, em 2021. Mas essa já é outra história.

Ah! Nana nº 1 (1976)

Dois anos depois da criação da Métal Hurlant, um grupo de mulheres ligadas a esta revista sugeriu que se criasse uma outra, feita por mulheres e a pensar neste público. Nascia assim a Ah! Nana, de que se publicaram nove números entre 1976 e 1978. O mais recente número especial da nova Métal Hurlant é uma homenagem a essa revista que mudou tanta coisa, em parte no mercado editorial da banda desenhada, em parte na percepção social sobre os mecanismos de uma sociedade claramente machista. São quase 300 páginas antológicas que reúnem uma selecção relevante do que se foi publicando nas páginas da Ah! Nana e que agora chegam às bancas (também em Portugal, em algumas livrarias e quiosques), confirmando que uma revista nascida e encerrada nos anos 70 do século passado continua a ter muito para dizer a quem, hoje, acredita que as grandes discussões sobre direitos e discriminações estão longe de estar encerradas.

Para além de bandas desenhadas e artigos seleccionados de entre os nove números da Ah! Nana, esta edição especial inclui depoimentos de muitas das suas redactoras e colaboradoras. Uma delas, Cecilia Capuana, conta que conheceu a Métal Hurlant num festival de banda desenhada, em Lucques, tendo enviado alguns trabalhos para a redacção. Em resposta, viu uma história publicada na Ah! Nana, revista irmã, e acabou por publicar também na Métal Hurlant (uma história de ficção científica que se espalhou por vários episódios). De certo modo, a escassez de autoras de banda desenhada que tantas vezes se referia perante um panorama francófono de publicações onde as vozes femininas não abundavam não era exactamente uma escassez. Quando apareceu uma publicação disposta a acolher trabalhos de autoras, eles apareceram. E deixaram marca, espalhando-se por outras publicações.

Ah! Nana nº 5 (1977)

O primeiro desses depoimentos é de Janic Guillerez, a responsável pela ideia de Les Humanoides Associés terem uma revista feita por mulheres e a sua directora. «A ideia surgiu à mesa, num restaurante, com Jean e Claudine Giraud, Tardi e Anne Delobel, sua companheira na altura, e Jean-Pierre Dionnet. Como os homens tinham tendência para se armarem em machões, sugeri que devíamos publicar uma revista feminina. A Anne Delobel e eu lançámo-nos de imediato e começámos a pensar num nome. Começámos por nos lembrar de Banana, mas tinha uma conotação sexual masculina muito evidente… Depois pensámos em Super Nana, e depois em Ah! Nana, que é uma forma de dizer “ah, mulheres”.» Começou, portanto, como um desafio, uma hipótese das que por vezes surgem entre copos e conversas, mas acabou por ser levado a sério. Jean-Pierre Dionnet gostou da ideia e a redacção da Ah! Nana começou a ganhar forma.

Pelas páginas da revista passaram bandas desenhadas de autoras francesas, mas também italianas e norte-americanas, como Trina Robbins, Shary Flenniken, Florence Cestac, Nicole Claveloux, Chantal Montellier, Aline Isserman ou Cecilia Capuana. A realizadora Agnès Varda também por lá passou e nesta antologia pode ler-se uma banda desenhada, em registo foto-novela, publicada em 1977, no terceiro número da Ah! Nana. A pluralidade de traços, registos gráficos, temas e modos narrativos é notável quando se lêem as bandas desenhadas que saíram nesta revista, muitas vezes reflectindo uma vontade de experimentação visual e narrativa que era também vontade de mudar paradigmas, arriscar outras formas de contar histórias em texto e imagem.

Florence Cestac

Ah! Nana não se apresentava como uma publicação feminista, ainda que parte dos seus conteúdos o fossem, sobretudo os dossiers temáticos e os textos. Nos dois anos que durou a publicação, a redacção escreveu sobre violência, resquícios do nazismo na sociedade da época, moda, sexualidade nas suas mais variadas expressões. E escreveu muito sobre livros, cinema, teatro, relações laborais, masculinidade e suas percepções, psicanálise, poder e todo o tipo de questões sociais e políticas. Era frequente a publicação de textos com opiniões com as quais a redacção não se identificava e textos que se colocavam em dois lados opostos de uma qualquer barricada, o que fazia desta revista um espaço realmente plural e instigador do debate, de vários debates.

As bandas desenhadas tinham em comum o facto de serem da autoria de mulheres, mesmo que esta regra tenha sido quebrada pontualmente e que até Moebius tenha desenhado uma história, «La tarte aux pommes», com argumento de Claudine Giraud, sua mulher. Algumas dessas bandas desenhadas eram abertamente contestatárias da uma sociedade patriarcal, que continuava a olhar para as mulheres como seres frágeis e menos capazes, mas outras deambulavam por variadíssimos outros temas, dando largas à criatividade narrativa das tantas autoras (e alguns autores) que por ali passaram.

Nicole Claveloux

Em Agosto de 1978, o governo francês publica um decreto-lei que proíbe a venda da revista a menores de 18 anos. A edição da Ah! Nana do mês seguinte, a número 9, dedicada ao tema do incesto, é imediatamente rotulada como “pornografia”. Sobre esse rótulo, vale a pena ler as palavras de Chantal Montellier, uma das colaboradoras assíduas da revista, na entrevista que se publica nesta edição especial: «Nunca vi um quarto de vinheta que tivesse pornografia nesta revista, e voltei a olhar recentemente para os poucos números que me restam, não havia nada de pornográfico. É absurdo! Esta proibição deveria ter causado escândalo, mas o título estava a competir com a imprensa masculina, por isso suponho que os nossos colegas ficaram muito contentes por nos verem desaparecer. Paranoia? Não tenho a certeza.»

Com a preocupação de instigar a discussão e a reflexão, mais do que fechar trincheiras num determinado campo, a Ah! Nana acabou por ser, sim, um marco feminista no panorama tão profundamente masculino da banda desenhada. Não precisou de o afirmar como lema, mas a sua herança passou por aí. Curiosamente, muitos estudos e antologias sobre a banda desenhada francesa do século XX ignoram esta publicação (caso do Larousse de la BD, de Patrick Gaumer), fazendo tábua rasa do seu impacto no imaginário colectivo, no mercado editorial de banda desenhada e sobretudo na conquista de espaços onde as mulheres tivessem voz e não ouvissem sempre o argumento estafado de que “há poucas mulheres a fazerem banda desenhada”. Talvez por isso a Ah! Nana mantenha a sua actualidade; avançámos alguma coisa na discussão sobre direitos de minorias ou sobre sexualidade, mas muito ainda estará por fazer. Não havendo uma revista como esta para servir de ponto de partida para todos esses debates, aí está a edição especial da Métal Hurlant com uma antologia do que de melhor se fez na Ah! Nana.