Na primeira pessoa
Ao terceiro número, a Mamute confirma o seu projecto. Talvez não o soubéssemos antes do primeiro número surgir, mas fazia falta uma revista de não-ficção onde coubesse o ensaio autobiográfico, a memória ou o relato de viagem, entre outros registos.
No início deste ano, entre a pandemia, os confinamentos e um inconfundível cheiro a apocalipse a espalhar-se no ar, nasceu uma revista. Trimestral, em formato de bolso e de design tão sóbrio como cuidado, a Mamute apresentou-se como uma «revista trimestral de ensaios criativos e autobiográficos em formato longo, que quer contar histórias pessoais que tenham eco colectivo.» Quando os primeiros exemplares começaram a chegar a quem os comprou via internet, percebeu-se que a revista iria um pouco além do registo memorialístico, que também tinha, assumindo o grande mérito de trazer para o espaço editorial português a chamada não-ficção criativa, etiqueta que, como quase todas, guarda uma infinidade de raízes – nomeadamente o New Journalism – e algumas discussões acaloradas sobre a sua definição. Parafraseando John McPhee, um dos seus mais reconhecidos cultores, a não-ficção criativa será um género de escrita que recorre a técnicas literárias para registar narrativas factuais. Também chamada de não-ficção literária, distingue-se de textos não-ficcionais tout court, como relatórios, teses académicas ou outro tipo de registos que, arrumando-se na não-ficção, não têm qualquer pretensão a constituir-se enquanto narrativas. Aqui, estamos no campo da factualidade, cumprindo as regras nas quais assenta parte do trabalho jornalístico, mas o modo de escrever assume a literatura (mas nunca a ficção) como oficina potencial.
O tipo de textos que cabe neste amplo espectro vai do ensaio autobiográfico à narrativa de viagens, passando pelo registo de histórias alheias, pela reportagem ou pela biografia. Na Mamute, já lemos alguma dessa pluralidade ao longo dos seus três números. Na edição com que se estreou, em Janeiro deste ano, a revista publicou um texto de Nuno Catarino sobre a utilização de bicicletas na cidade, cruzando uma série de factos e informações com a sua experiência pessoal; um ensaio autobiográfico sobre a descoberta da sexualidade e a sua relação com a literatura, assinado por Cláudia Lucas Chéu; o registo, assinado colectivamente, dos acontecimentos que estiveram na origem de um Centro de Apoio Mútuo criado no coração de Lisboa (Seara); uma reflexão poética sobre a morte, de João Pedro Azul; o relato de uma viagem de João Sousa Cardoso ao Mississipi. Foi um primeiro número promissor, assinalando as múltiplas possibilidades de um espaço de publicação como este. No segundo, publicado três meses depois, a diversidade temática manteve-se, com textos que iam do diário de viagem (Yara Monteiro) à reflexão sobre os muitos graus de diferença sentida, e imposta, pela percepção social de um determinado sotaque (Mariana Rezende Pinto), passando pelo registo de um período sofrendo a doença que parou o mundo, a Covid-19 (Margarida Ferra), entre outros.
No mais recente número, o terceiro, a Mamute publica quatro textos. Dois deles, assinados por Ana Duarte e João Silveira, são atravessados pela saúde mental e as consequências do seu enfraquecimento. Os outros dois partilham a memória e a infância, ainda que o de Miguel Meruje se ocupe de memórias próprias – a infância no colégio de freiras – e o de Inês Pedrosa e Melo convoque sobretudo memórias alheias, de família, reflectindo também sobre o modo como tantas vezes nos apropriamos desses ecos do passado. Digamos que a pluralidade temática se fechou um pouco, ainda que não saibamos se isso se deveu a uma escolha editorial ou à coincidência das escolhas dos colaboradores desta edição. Pouco importa. A Mamute parece estar a afirmar-se também como uma caixa de ressonância dos temas que assumem importância para quem nela vai escrevendo e isso acaba por ecoar também temas e preocupações que são pertença da comunidade. Nunca se falou tanto de saúde mental no espaço público como agora, ainda que possamos sentir que o tema chega tarde, pela sua importância e pelos estragos que sempre causou o seu silenciamento. Quanto à memória, essa foi estando sempre presente, ainda que com abordagens distintas, mas talvez estejamos a sentir por cá o impacto que os ensaios e os romances autobiográficos, bem como as reflexões feitas em diferentes linguagens e suportes (da banda desenhada ao cinema, passando pelo ensaio fotográfico), têm tido no espaço anglófono. E já era tempo.
Em sintonia com o mundo e com as infindáveis possibilidades de o ler e de com ele criar conflitos mais ou menos apaziguadores, esta revista veio ocupar um espaço que estava vazio, mas que parecia clamar por uma materialidade qualquer que lhe desse destaque e pudesse servir de gatilho para mais vozes, discursos e pontos de vista. Se as revistas nascem sempre sob a ameaça de uma vida curta, sobretudo as que se sustentam de modo independente, sem grupos económicos ou editoriais e vivendo apenas dos seus leitores, é justo que quando aparece uma que se destaca pelo seu miolo – afinal, aquilo que verdadeiramente conta – só temos de assumir o compromisso de a manter viva. Isso, claro, passa pela leitura, mas não tenhamos contemplações nem romantismos: passa, antes de tudo, pela compra. Neste caso, é um compromisso que vale a pena assumir.