Movimento 14-20 a Ler: pensar, programar e fazer com jovens
O que farei com este projeto…
Beatriz apresenta-se ao público no episódio 0 do Podcast Mente Orientada. Sem que a voz denote qualquer nervosismo, explica com naturalidade que a ideia de fazer um podcast andava a fermentar há tempos e que até a sua psicóloga lhe tinha sugerido que o fizesse. Porque fala muito, gosta de partilhar interesses e teve a oportunidade, ali está ela, desvendando porque gosta de KPop Anime, Harry Potter… Ou de ler, e do papel que os livros sempre tiveram na sua vida, desde a fase em que sociabilizava menos e se deixava levar pelos mundos que a leitura lhe abria.
Beatriz é aluna do Agrupamento Josefa de Óbidos, em Óbidos, e foi Luis Germano, professor bibliotecário do agrupamento, que deu um empurrão para que arrancasse com o projeto do Podcast. Já tem três episódios gravados, todos no pequeno estúdio multimédia da biblioteca escolar. “É uma ideia tão longínqua que surgiu no meu 8º ano. Estava com o responsável da biblioteca escolar, o professor Luís Germano, a quem dou um grande agradecimento, e que me ouvia falar de muitos temas. Ele já me conhecia desde que eu andava no Complexo Escolar dos Arcos. Então, ele chegava a mim e dizia: “Oh pá, oh Beatriz, porque é que não gravas um podcast?” Ele andou a chatear-me (entre aspas!) uns bons meses. Quase dois anos depois decidi.”
Esta é apenas uma das iniciativas que o projeto LerÓbidos: Movimento 14-20 a Ler desenvolve. Desde 2019, quando o Agrupamento de Escolas Josefa de Óbidos concorreu e foi seleccionado para ser apoiado pelo Plano Nacional de Leitura, que a palavra tem ganho protagonismo: houve poemas inscritos em roupas que podiam ser lidos através de QR codes, a adaptação do Auto da Barca do Inferno a cinema, a criação de um fanzine, oficinas de leitura em voz alta, de escrita, de podcast, de literacia para os media ou de jornalismo, encontros e conversas com escritores… e sobretudo muitas leituras que deram origem ao CD Tens é garganta! – só se pode ser poema no outono. Em parceria com a Academia de Música de Óbidos e com a editora Abysmo os alunos escolheram, leram e musicaram poemas que resultaram num concerto comentado e no seu registo em CD.
Articular: o segredo do sucesso
LerÓbidos não é caso único. Até ao dia de hoje foram mais de trinta os projetos apoiados no âmbito do Movimento 14-20 a Ler. Pensado e criado pelo Plano Nacional de Leitura, surgiu com o objetivo de dar voz e autonomia ao público juvenil na sua relação com a leitura. Alargar o foco da prática leitora para além do individual silencioso, do espaço solitário do quarto ou formal da sala de aula, do formato impresso e do género literário. Em suma, afastar estereótipos e formatações que limitam a curiosidade dos jovens pela própria leitura.
Perante a necessidade de chamar os jovens para a ação, realizaram-se dois focus group na sede do PNL, com especialistas em diversas áreas e jovens, com a consultoria de Ines Mirèt. Foi do resultado desses momentos de diálogo e reflexão, em conjunto com o conhecimento do território e com o enquadramento dado pela especialista espanhola, que nasceu o Movimento 14-20 a Ler. O projeto pretende ver cruzadas várias linguagens artísticas, com a leitura e a escrita como suportes, através dos interesses e das iniciativas de um grupo de jovens numa determinada comunidade.
Para isso, há parâmetros e uma candidatura que, sendo aprovada pelo PNL, será acompanhada, avaliada e receberá uma verba para a realização do projeto candidato. Este terá a duração de três anos e caberá a uma escola ou agrupamento a sua gestão financeira. Como espaço de recrutamento por excelência, é tendencialmente o epicentro estratégico para promover relações e envolver a comunidade. Ainda, a figura dos professores bibliotecários tem muito peso em algumas escolas, pela proximidade e conhecimento mais transversal que têm dos alunos e pela prática de pensar e desenvolver planos de atividades. Porém, o principal responsável pelo projeto pode ou não ser o professor bibliotecário. É imperativo que a escola tenha um conjunto de parceiros, individuais ou coletivos, nas áreas artísticas ou científicas a que os alunos se vão dedicar. Podem ser estes a alimentar com os jovens uma parte significativa das atividades. Outro elemento relevante é a componente não letiva: idealmente o trabalho do grupo ou grupos deve realizar-se fora do espaço e tempo da sala de aula, mesmo que seja na escola que se desenrolem encontros e momentos de produção ou discussão.
Anabela Caldeira participa na avaliação das candidaturas e é o rosto institucional do PNL no terreno. Para além de receber informação do que vai acontecendo, reúne com cada equipa pelo menos uma vez por ano.
A primeira reunião é de esclarecimentos e de planificação. “Tem de ficar muito claro o que se pretende com a participação dos miúdos, que queremos que eles não sejam meros receptores e sim decisores do que querem fazer. É importante que os parceiros estejam envolvidos com ideias e ferramentas. Não é apenas doar o espaço de um teatro ou uma associação para se fazer um espetáculo. Sabemos que é difícil que todas estas pessoas tenham uma disponibilidade compatível, é muito difícil.
Por isso temos de explicar que um projeto como este não se materializa com um conjunto de atividades avulsas, tem de ter um objetivo, uma motivação, uma unidade. Os alunos podem querer aprender a fazer um filme, a explorar a linguagem da banda-desenhada, ou a experimentar a arte urbana. Claro que sim. Então temos de ver quem se pode associar para lhes dar oficinas, ou para conversar com eles sobre o assunto, ou para os levar a visitar este ou aquele espaço. Pode haver mais do que um produto, e pode haver rotação dentro do grupo de alunos, ou subgrupos. Mas tem de haver articulação. Articulação é a palavra-chave. Articulação e identidade. E não podemos esquecer que a leitura e a escrita têm de estar presentes.”
A segunda reunião pretende avaliar o processo ao longo do primeiro ano, o que se cumpriu, o que se desviou, o que se atrasou, o que ficou pelo caminho. E, depois do balanço, importa voltar a planificar, ajustando, o segundo ano. “As coisas alteram-se, e não faz mal. Desde que se perceba que quem está no terreno trabalha, que há dinâmica, interação. Voltamos ao mais importante: articulação. Insisto sempre que estejam na reunião todos os envolvidos, que não só os parceiros estejam presentes como os jovens. O projeto tem de ser deles e não apenas para eles.”
Finalmente, no terceiro ano, espera-se que tudo já caminhe com autonomia, que as arestas estejam limadas e que haja condições para concretizar o que se vem desenvolvendo nos anos anteriores. O ideal é que o projeto ganhe sustentabilidade, sobretudo por parte da participação e envolvimento dos intervenientes e que continue depois de terminado o tempo do financiamento. “Aconteceu isso, por exemplo, na Escola Secundária de Forte da Casa. O projeto começou em 2018 e o financiamento durou até 2020-2021. Mas a Laredo, a associação que o dinamiza em parceria com a Biblioteca Municipal da Póvoa de Santa Iria e a Casa da Juventude de Forte da Casa, continua no terreno.”
O projeto que tal como todos os outros está disponível no portal do PNL2027, visou sensibilizar e dar ferramentas de mediação leitora e de escrita criativa a alunos e comunidade educativa do agrupamento. Seis alunos do 12º ano dos cursos profissionais de Apoio à Infância e de Auxiliar de Saúde intervieram, orientados e complementados pela Laredo, junto de turmas do 10º ano do curso profissional de Apoio à Infância, capacitando-os para a promoção da leitura.
Uma excepção não faz a regra, mas podia fazer
Se por um lado a intenção do Plano Nacional de Leitura é a de servir de catalisador para programas que ganhem asas para continuar, Anabela Caldeira assume que o apoio financeiro que o PNL dá aos projetos do Movimento 14-20 a Ler, e que pode chegar aos 10.000 euros, é determinante para a sua existência. Em conversa com o professor bibliotecário de Tábua, a coordenadora do projeto no PNL constatou que foi graças à verba atribuída que a Biblioteca Escolar pode adquirir alguns livros de fotografia cujo valor seria proibitivo, não fora aquela verba. Agora, o fundo está mais rico e disponível para todos, e não apenas para quem participou na residência artística de fotografia.
Dois Pontos: residências de criação artística e literária tem o Agrupamento de Escolas de Tábua como entidade coordenadora mas toda a ação se desenrola na Biblioteca Municipal, que tem duas pessoas da equipa como co-responsáveis do projeto, a par do professor bibliotecário do agrupamento, uma professora da Escola Profissional Eptoliva e uma representante da Gambiarra Associação Cultural. É aliás interessante verificar que na página de apresentação, no portal do PNL2027, se distinguem responsáveis institucionais de responsáveis, em duas equipas distintas.
Trata-se de um projeto de residências de criação que se realizam em períodos de férias e decorrem durante uma semana. Para trabalhar com o artista convidado os jovens inscrevem-se voluntariamente. O professor bibliotecário está muito disponível e presente e faz a ponte com os alunos na escola para a divulgação. Cada residência funciona com grupos de 10 a 12 jovens, pequenos grupos para não comprometer essa relação e acompanhamento próximo ao longo da residência. Anabela recorda parte da experiência: “A primeira foi de fotografia e os alunos gostaram muito. Desse grupo de alunos houve uma que também participou na residência seguinte, que era de Arte Urbana, e fez a reportagem fotográfica. Partiu dos alunos. À partida não se repetiriam pessoas para dar oportunidade ao maior número de alunos possível. Mas esta iniciativa permitiu um cruzamento mais abrangente e uma comunicação mais eficaz junto dos restantes alunos e da comunidade.” A residência sobre Arte Urbana partiu da figura de Sarah Beirão, escritora, jornalista e ativista nascida em Tábua no final do século XIX. O grupo pintou um mural no coreto e duas fachadas de um outro edifício.
A terceira foi sobre Banda-Desenhada e a mais recente de escrita criativa com o escritor Ricardo Fonseca Mota, que também vive em Tábua e é o presidente da Gambiarra, associação cultural parceira. Neste grupo havia a particularidade de estarem duas raparigas que já tinham acabado o ensino secundário e tinham ingressado na faculdade. Como o projeto prevê a participação de jovens entre os 14 e os 20 está contemplada esta possibilidade, embora seja raro que aconteça.
Quando Anabela Caldeira visitou o grupo e assistiu a um dia da residência constatou que se vivia um verdadeiro ambiente de trabalho, os jovens tinham ideias muito originais e que nem davam pelo tempo a passar. Quando lhes perguntou se não se cansavam de passar uma semana inteira ali, de manhã à noite, sem poder estar a mexer no telemóvel, houve quem respondesse: “Nem nos damos conta!”
A participação dos jovens: o maior desafio
Sendo a principal intenção deste Movimento a de trazer os jovens para a dianteira da ação, dar-lhes espaço e apoio para criarem, experimentarem e refletirem, nem sempre é fácil tê-los presentes logo na criação dos projetos. Há muitos casos em que a participação e o envolvimento dos grupos acontece mas não parte deles o desejo ou a manifestação por esta ou aquela área criativa ou artística. Também por aqui se deseja que o Movimento vá deixando sementes.
Há algumas escolas que já têm experiência de desenvolver projetos com os alunos e com associações exteriores ao agrupamento. Essas enquadram o projeto 14-20 a Ler numa política mais ampla que já vem de trás. A Escola Secundária Camões em Lisboa é um desses casos. Ali os alunos já estão motivados para assumirem os projetos, a própria escola tem parceiros com quem normalmente colabora.
“Nestas escolas muito participativas já há alunos muito ativos e autónomos com quem naturalmente os professores bibliotecários conversam para criarem o projeto e que são âncoras para reunir outros alunos. Este é o processo mais dinâmico.
“Nas escolas onde a participação está menos desenvolvida, o processo é mais vertical e institucional: a ideia de concorrer ao 14-20 a Ler é apresentada ao Conselho Pedagógico, depois de ser assumido o interesse os professores e os professores bibliotecários falam com os alunos sobre o projeto, há uma lista de inscrições, e finalmente começam as reuniões com os alunos que se inscrevem.”, explica-nos Anabela.
As estratégias são variadas e dependem sempre de quem está no terreno, muitas vezes na Biblioteca Escolar. No caso do projeto Apalavrartes, no Agrupamento de Escolas Fernão do Pó, no Bombarral, as professoras bibliotecárias convocaram os alunos voluntariamente para um encontro na biblioteca, arranjaram papel de cenário e todos foram escrevendo as ideias que tinham para o projeto. Depois, organizaram-nas e deram-lhes forma e coerência com o envolvimento dos alunos.
Outro exemplo é o do Agrupamento de Escolas de Condeixa, onde jovens se erguem ativamente para defender direitos humanos. O projeto Read and Stand Up arrancou com a Associação de Estudantes, o Clube de Debate e o Clube Multimédia; uma turma do 9º ano, duas do 10º e uma de um curso profissional como participantes e tem como público os alunos da escola secundária, a comunidade educativa e a comunidade em geral. A sua intervenção vai da escola à rua, com performances, murais, marchas, leituras públicas, todas em defesa de causas ambientais e sociais. Em janeiro, uma das turmas que neste segundo ano do projeto já frequenta o 11º ano levou à cena a reescrita encenada de uma parte do Sermão de Santo António aos Peixes, de Padre António Vieira. O seu propósito tem a ver com um ativismo pela positiva como refere a aluna Diana Pocinho: “Esta atividade ajudou-nos a compreender o sermão e ajudou-nos a formar uma qualidade de saber destruir este sermão e construir uma coisa mais fácil de se entender e mais simpática para as outras pessoas. O sermão é bastante crítico e aqui focamo-nos no bom e nos valores da nossa sociedade em vez de nos focarmos no mau, que é o que fazemos no dia-a-dia.”
Em movimento
Há projetos espalhados por todo o país como se vê na página do facebook criada para dar unidade à divulgação de cada um. De stand up a arte urbana, do teatro à ideia de marginalidade, da mediação leitora ao cinema de animação, há de tudo um pouco. Pelos vídeos, fotos e testemunhos, é possível descortinar dinâmicas, reconhecer entusiasmos, ir buscar inspiração. Mas, como Anabela Caldeira partilha: “Há projetos em que as pessoas estão muito envolvidas mas não divulgam muito. Na verdade a divulgação está a ser feita para dentro, para o seu público e a sua comunidade. E funciona bem. Quando vou visitar as escolas fico muito surpreendida pela positiva. Até emocionada.”