Espelho Meu Andreia Brites 21 Março 2022

A música dos ossos
David Almond
Presença 

O britânico David Almond é, sem contestação, um dos mais importantes escritores contemporâneos de literatura juvenil, à escala mundial. Temas, estilo e intenção são transversais e facilmente identificáveis nos seus inúmeros livros. O auto-conhecimento e a consciência de existir no mundo serão provavelmente os dois principais alicerces a partir dos quais as narrativas ganham forma e diegese. Por essa razão as suas novelas centram-se em experiências transformadoras de uma personagem, que oscilam entre contextos sociais e familiares problemáticos e dramas interiores. O questionamento é uma constante e a presença do maravilhoso como catalisador de epifanias assume um papel mais relevante do que um mero recurso estilístico.

Significa isto que a contemplação, a valorização da materialidade da natureza e as suas manifestações espirituais constituem um ideário sobre a condição humana.

Partindo desta premissa, A música dos ossos acompanha a descoberta pessoal de Sylvia, uma rapariga adolescente que se vê contrariada numa aldeia rural, onde a mãe pretende ela própria reencontrar-se com as suas origens. Apesar da falta de comunicação com as amigas e da sua timidez, desde muito cedo Sylvia pressente uma força musical que a perturba e a descentra. À medida que vai travando contacto com os habitantes, a rapariga começa a sentir o impacto da natureza, dos pássaros que cantam, dos animais que respondem ao chamamento da música, dos vestígios arqueológicos que emergem facilmente do solo e das rochas.

Se Andreas é fundamental na introdução ao passado, é com Gabriel que partilha uma experiência mística de iniciação. A empatia entre ambos não resulta da idade ou tão pouco de hábitos quotidianos ou interesses sociais. O que os une é, ao invés, essa dimensão de ligação à origem que ambos intuem.

Assim se desenrola a novela, com a lentidão própria de um manifesto contra os artifícios tecnológicos, a voragem do tempo, sempre no presente, a imposição violenta e catastrófica do ser humano à natureza. Poder-se-á tratar de uma tomada de posição ecológica, até da crença nos jovens como agentes da mudança, mas é sobretudo uma narrativa sobre o poder místico de uma história infinitamente natural, como se esse passado estivesse, no caso de Sylvia, mais incrustado no seu ADN.

Talvez haja, neste livro, um pouco mais de contemplação do que noutras obras, cujo discurso dos protagonistas vai mais longe na reflexão. Aqui, Sylvia resolve-se. Talvez seja o menos interessante da narrativa e aquilo que de certa forma a enfraquece. O mistério desaparece porque a personagem o aceita e incorpora. Porém, intui-se um apaziguamento interior de Sylvia que não valoriza nem a personagem nem uma dimensão mais questionadora da obra. Apesar disso, David Almond não sabe escrever mal.

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