Montra de banda desenhada
Dez livros sem ordem definida para navegar pelas prateleiras da banda desenhada, recentemente acrescentadas de umas quantas dezenas de títulos.
Ao longo das últimas décadas, a edição de banda desenhada em Portugal tem composto um gráfico de altos e baixos acentuados, sobretudo quando falamos dos livros com maior distribuição comercial. Se no início deste século se publicava pouco, sobretudo quando comparamos com a década de 90 que fechou o século anterior com grandes promessas de um mercado em crescimento, os últimos anos têm trazido uma nova vitalidade à secção de BD das livrarias, com livros e catálogos para todos os gostos.
Na edição de média e pequena escala, os altos e baixos do mercado nunca foram demasiado relevantes, talvez porque o ritmo e as tiragens nunca procuraram inundar livrarias, mas antes ir construindo catálogos e conquistando leitores. Talvez, em boa medida, essa persistência tenha beneficiado a grande escala, com editoras de maior envergadura a aproveitarem esse aumento paulatino de leitores para reactivarem o seu trabalho, ou para o intensificarem.
Independentemente de escalas e tiragens, e estando agora o mercado editorial português num momento que parece de grande vitalidade no que à banda desenhada diz respeito, nos últimos meses chegaram às livrarias dezenas de títulos, entre traduções e originais portugueses. Há reedições de clássicos e de contemporâneos, séries que continuam a encontrar um público, novos usos para uma linguagem sempre aberta à experimentação, regressos de autores, livros de grande tiragem, outros com poucas dezenas ou centenas de exemplares. Não é o ditado que diz que há de tudo, como na farmácia, mas quase. Aqui deixamos uma selecção bastante ecléctica, procurando mostrar sobretudo a diversidade do que se vai publicando por estes dias. Estamos, claramente, a viver um dos picos altos desse gráfico invisível e vale a pena conhecer o que enche as prateleiras da banda desenhada neste momento.
Sete Senhoras
Margarida Madeira
Ala dos Livros
Vencedor do Prémio Revelação Amadora BD 2023, Sete Senhoras reúne sete histórias sem aparente relação, ainda que seja clara a pertença de cada uma delas à história pessoal da autora. Num traço de linha clara, dominado por uma encenada ingenuidade nas fisionomias, Margarida Madeira desfia as vidas de sete mulheres, todas integrantes das suas memórias de infância. Algumas são da família, como a bisavó da autora, outras são pessoas com quem se cruzava, que observava, que faziam parte dos seus dias, da vizinha da frente à auxiliar de acção educativa da escola, passando pela senhora da mercearia ou pela avó de uma amiga.
Apesar da independência narrativa, com cada história a ler-se autonomamente, o livro revela uma unidade intensa no modo como constrói uma narrativa maior, composta por fragmentos, como é apanágio das nossas memórias individuais e do como como as organizamos e vamos relembrando ao longo da vida, mas revelando no seu todo esse exercício de olhar para trás e tentar compreender o que deu sentido ao percurso de uma vida. Nestas histórias, não é o percurso que se conta, mas sim o sentido, ou parte considerável dele.
Toda a Mafalda
Quino
Iguana
Tradução de Maria José Sacadura e Ricardo Pereira
Depois de várias edições portuguesas ao longo das últimas décadas, a Iguana assinala os 60 anos de Mafalda com uma nova edição de Toda a Mafalda. Aqui se reúnem as tiras desenhadas por Quino, organizadas cronologicamente e devidamente enquadradas por um conjunto de textos onde se traça a história das personagens, as suas aparições e o percurso geral desta figura que há muito faz parte do imaginário colectivo e sem a qual a segunda metade do século XX seria uma coisa muito diferente, talvez mesmo irreconhecível.
Para além das tiras publicadas na imprensa ao longo dos breves nove anos em que Quino deu vida à personagem, Toda a Mafalda inclui também os trabalhos posteriores em que, pontual e excepcionalmente, o autor voltou desenhar Mafalda, uma série de homenagens de outros desenhadores e o registo do sucesso mundial da menina que não gostava de sopa, quer sob a forma de livros, quer através dos filmes animados que entretanto se fizeram. São seiscentas páginas que toda a gente devia manter por perto, como é apanágio dos clássicos.
A Montanha
Maria João Worm
Quarto de Jade
O mais recente livro de Maria João Worm constrói-se com elementos visuais atravessados pela luz. Há uma técnica por trás disso, naturalmente, uma caixa de luz que assegura a travessia e faz destacar sombras, cores e transparências, mas não é a técnica que estrutura o livro. A Montanha é uma narrativa visual que dificilmente cabe em arrumações muito definidas nas suas fronteiras. Os elementos que vão desfilando em cada vinheta são reconhecíveis (figuras humanas, animais, plantas, pedaços de paisagem, elementos da produção permanente em que vivemos mergulhados) e é com eles que a leitura vai estruturando uma narrativa, ou várias.
No cerne da luz e da sua incidência nas coisas guarda-se o tempo. Será esse o eixo de A Montanha, do mesmo modo que a montanha propriamente dita – que acompanhará a narrativa do princípio ao fim, mesmo quando não se materializa em imagem – é um eixo nesta cronologia desgarrada que parece vir de muito longe, de um tempo em que as histórias contadas iam dando sentido ao mundo, prolongando-se até um presente que reconhecemos nas máquinas que destroem e constroem, nos telemóveis que tudo fingem captar, na poeira deixada pelos restos do que não soubemos preservar. Esta sequência de imagens atravessadas pela luz conta uma história feita de muitas histórias, nenhuma delas fechada em ideias fixas de princípio, meio e fim, talvez por ser impossível encerrar num arco fixo esse tempo que atravessamos, as memórias de que somos feitos e os futuros mais ou menos angustiantes que vamos conjurando ou procurando evitar.
Hoje Não
Ana Margarida Matos
Chili Com Carne
Eis uma reedição que se impunha, ou não estivéssemos perante um dos trabalhos mais disruptivos da banda desenhada portuguesa dos últimos anos. Em registo de diário e à boleia da quarentena imposta pelo Covid-19, Ana Margarida Matos explora as categorias de espaço e tempo a partir das infinitas potencialidades da linguagem da banda desenhada. Cruzando a angústia trazida pela pandemia com a incerteza do futuro – a licenciatura em Belas Artes está a chegar ao fim, o que se segue é incerto… – a narradora deste Hoje Nãomergulha sem rede nesses muitos acidentes cósmicos onde espaço e tempo se cruzam, e que tanto podem ser um canto lá de casa, visto de ângulos tantas vezes inesperados, como as múltiplas instruções com que nos confrontamos quotidianamente de modo a podermos dar seguimento à nossa vida, como a ideia simultaneamente atraente e assustadora de eternidade.
Afirmando-se como um diário, facilmente se lê este livro como um ensaio sobre a inevitável existência simultânea dessas duas categorias, fundidas numa só, essa ideia de espaço-tempo como um continuum a que os físicos dedicam o pensamento e que aqui se declina nas suas muitas variações quotidianas, confirmando que em cada existência há tantas curvas quânticas e buracos negros como no Universo que não sabemos como apreender.
Crónicas de Jerusalém
Guy Delisle
Devir
Tradução de Paulo Salgado Moreira
Conhecido pelos seus livros de viagens em banda desenhada, Guy Delisle passou uma temporada em Jerusalém, em 2008-2009, anos que parecem longínquos se atendermos aos acontecimentos mais recentes na Palestina… Destas Crónicas de Jerusalém, originalmente publicadas em 2011 e vencedoras de vários prémios desde então, não se esperem análises profundas sobre a ocupação da Palestina por Israel ou sobre as várias propostas a que já assistimos sobre o melhor modo de diferentes povos partilharem a cidade, mas antes notas do quotidiano, algum humor perante os hábitos e práticas locais e a habitual leveza com que Delisle procura representar o que para si é diferente. O conflito não deixa de existir, quase sempre em pano de fundo, ainda que várias personagens o abordem, mas é no seu dia a dia em Jerusalém que o autor se foca, bem como na panóplia de personagens que vai encontrando e que acabam por marcar os seus dias, dando-lhe matéria infinita para construir este livro.
Prego #8
Alex Vieira (editor)
Prego
A Prego é uma revista com alma de fanzine. A ficha técnica, o cuidado na paginação e o editorial colocam-no no patamar das revistas, ainda que a periodicidade irregular abale tal colocação. Por outro lado, a unidade estética que prevalece, apesar de ser uma edição colectiva, a linguagem desbragada e esta aparência punk em cada vinheta desenhada aproximam-na dos fanzines. Seguramente, não será coisa que preocupe a equipa desta revista, com edição de Alex Vieira e colaborações de cerca de quarenta artistas, entre autores de banda desenhada, ilustradores e criadores vários.
Pelas páginas a preto e branco desfilam bandas desenhadas curtas, cartazes, ilustrações, composições fotográficas e outras criações gráficas, para além de outros artigos, entre eles uma entrevista com a artista brasileira Silvana Mello. Como encarte, um brinde em forma de poster de dupla face, de um lado a reprodução da capa (assinada por Eduardo Belga), do outro uma das ilustrações do miolo (a de Law). Há alguma zanga a atravessar parte destas imagens, mas há sobretudo uma preocupação com o futuro (por vezes, uma ideia muito clara de não haver coisa a que se possa chamar futuro), tema que serviu de mote a esta oitava edição de uma revista que começou no Brasil e se mudou para Portugal, acompanhando o movimento do seu editor.
Presas Fáceis – Abutres
Miguelanxo Prado
Ala dos Livros
Tradução de Ricardo Magalhães Pereira
Depois de um primeiro volume publicado entre nós pela Levoir, a Ala dos Livros traz às livrarias o segundo desta série do galego Miguelanxo Prado, prosseguindo as investigações dos inspectores Olga Tabares e Carlos Sotillo. Ambientado na Corunha, o enredo policial convoca vários temas infelizmente na ordem do dia, do abuso sexual de menores ao tráfico de seres humanos, num registo que se assume universal, mas que nunca perde a relação com o local onde decorre. À medida que a investigação avança e a trama se adensa, Prado a narrativa vai revelando as descobertas sobre os crimes em causa, mas vai igualmente reflectindo sobre os mecanismos sociais e comunicativos que permitem ocultar – e, portanto, potenciar – crimes como estes.
Prado continua exemplar no seu trabalho de cor, sempre densa, saturada, mas aqui explora os lugares escuros, os dias cinzentos, o ar pesado, e não tanto os cromatismos garridos que marcaram alguns dos seus livros mais antigos. Presas Fáceis – Abutres é um policial em banda desenhada, e assume com mérito todos os mecanismos narrativos e de ocultação/revelação do género, mas é também um retrato duro da invisibilidade que atravessa o nosso quotidiano tão cheio de ilusórias visibilidades cibernéticas.
Dias de Areia
Aimée de Jongh
Asa
Tradução de Helena Guimarães
Ficção documental em banda desenhada, com ponto de partida na época da Grande Depressão, mais concretamente o chamado Dust Bowl, fenómeno que cruzou tempestades de areia, seca extrema e escassez alimentar e que afectou a região das Grandes Planícies norte-americanas. Tirando partido do imenso arquivo que resultou do trabalho encomendado a vários fotógrafos pela Administração de Segurança Agrícola entre 1937 e 1942, Aimée de Jongh convoca a fotografia e incorpora-a no seu livro, quer no argumento, criando um protagonista cujo trabalho é precisamente o de percorrer a região e fotografar o que vê, quer no desenho, utilizando vários planos e um trabalho de mise en pâge que dialoga com os registos fotográficos.
Dias de Areia é uma ficção e as suas muitas camadas narrativas tratam de criar espessura psicológica e emocional com uma galeria de personagens complexas, não apenas atravessadas pela pobreza, mas também pelas suas histórias, memórias e fantasmas. John Clark, o fotógrafo nova-iorquino que dá por si no Dust Bowl sem saber muito bem o que fazer com tudo o que vê, acabará por partilhar alguns desses fantasmas, nos quais descobre semelhanças com os seus próprios, e este livro é muito mais a sua travessia do que o mero registo da miséria extrema e da fome que tantos norte-americanos só descobriram a partir de fotografias como as que John poderia ter tirado, não fosse ele uma personagem de ficção.
Admirável Mundo Novo
Fred Fordham (a partir de Aldous Huxley)
Relógio D’Água
Tradução de Mário Henrique Leiria (com revisão de Filipa Oliveira)
A adaptação de romances para a banda desenhada redunda muitas vezes numa mera transposição de linguagens, sem que o ponto de chegada acrescente grande coisa a uma leitura demasiado literal do texto de partida. Fred Fordham não mexeu na estrutura ou no texto de Admirável Mundo Novo, o portento literário com que Aldous Huxley encenou a sociedade de consumo levada a um extremo de eficácia tal que redundou, e não de forma inesperada, numa distopia, mas soube criar um ambiente visual que acrescenta linhas de interpretação ao romance de 1932, puxando-o para um presente que nos é reconhecível. O autor, que já adaptou outros romances à banda desenhada (mataram a Cotovia, de Harper Lee, e O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald), desenvolve aqui uma estética que parece dever muito aos trabalhos gráficos e ao cinema dos anos 70 do século passado, com algum psicadelismo nas cenas iniciais e um formalismo intenso no modo como os corpos se movem e se organizam no espaço público, mas também com uma composição limpa e sem excessos, a lembrar um filme de ficção científica cujos cenários tivessem sido visitados por uma brigada de desinfecção extrema.
Entre ecos de Mad Max e laboratórios esterilizados capazes de responderem a todos os desejos consumistas, esta versão de Admirável Mundo Novo não deturpa a prosa de Huxley, criando-lhe um universo visual que já pouco tem de futurista, parecendo, pelo contrário, confirmação de uma profecia com algumas décadas.
Os Lusíadas (vol. I)
Pedro Moura, Daniel Silvestre, João Lemos e Miguel Rocha (a partir de Luís de Camões)
Levoir
Nos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, a Levoir dá continuidade à sua colecção de Clássicos da Literatura Portuguesa em BD com uma adaptação de Os Lusíadas em banda desenhada. Com argumento de Pedro Moura e desenho de Daniel Silvestre, João Lemos e Miguel Rocha, o épico camoniano surge aqui numa versão que demarca claramente os seus diferentes níveis diegéticos, com cada um dos três desenhadores a assumir um registo: Daniel Silvestre assume a voz narradora, corporizando um Camões de linhas claras e gestos amenos; Miguel Rocha toma conta da grande narração da viagem de Vasco da Gama; João Lemos conta as histórias dentro da história, essa parte tão importante de Os Lusíadas na sua vertente de grande narrativa fundacional.
Ainda falta publicar um segundo volume, mas é já muito claro que esta nova versão do texto de Camões em banda desenhada foge da simples recontagem narrativa com texto e imagens, explorando as múltiplas possibilidades que se abrem, a partir do texto camoniano, para encenar outras leituras que dele derivam, usando a ligação entre texto e imagem e, sobretudo, criando gramáticas visuais muito sólidas que diferenciam níveis narrativos sem com isso quebrarem a unidade geral da obra.