Editorial 5 Novembro 2024

Lucidez em tempos sombrios

No Ensaio sobre a Lucidez, romance de José Saramago publicado em 2004, uma cidade entra em convulsão a partir do momento em que os seus moradores, chamados a escolherem os seus representantes, decidem maioritariamente pelo voto em branco. No decorrer da história, há um momento em que os trabalhadores da recolha do lixo entram em greve. E então, ao meio-dia, de todas as casas da cidade saíram mulheres armadas de vassouras, baldes e pás e, sem dizerem uma palavra, “começaram a varrer as testadas dos prédios em que viviam, desde a porta até ao meio da rua, onde se encontravam com outras mulheres que, do outro lado, para o mesmo fim e com as mesmas armas, haviam descido.” No terceiro dia da greve, a essas mulheres, vestidos à civil, juntaram-se os trabalhadores da recolha do lixo. “Disseram que os uniformes é que estavam em greve, não eles”, e puseram-se a limpar a cidade. 

No final de outubro, várias cidades da Comunidade de Valência, em Espanha, foram atingidas por um fenómeno atmosférico que provocou fortes chuvas e consequentes cheias. Mais de duas centenas de pessoas faleceram e há ainda muitos desaparecidos. Em meio ao cenário devastador, três dias depois da tragédia, milhares de voluntários saíram de casa munidos de vassouras, pás, baldes e cruzaram a pé as pontes que ligam a capital Valência aos municípios mais afetados. A maré de voluntários também levava água, comida e roupa para os atingidos.  

“Há uma cultura que falta instalar, cultivar e desenvolver: a cultura da participação. Falo da participação entendida de maneira múltipla, politica, social, cultural, de todos os tipos”, disse José Saramago numa entrevista em 1995, altura em que publicou Ensaio sobre a Cegueira. “Claro que a democracia, para se desenvolver, necessita da participação”, afirmou o escritor, para logo pontuar que ir, a cada quatro anos, depositar um voto numa urna, não era a garantia de se viver numa democracia. 

O gesto de milhares de cidadãs e cidadãos espanhóis que saíram das suas casas para ajudar aqueles que perderam familiares e bens materiais serve de exemplo e é um alento de esperança. A pergunta que fica é se a sociedade civil conseguirá fazer dessa maré de solidariedade algo produtivo, algo que fortaleça a democracia, ou deixar-se-á contaminar pelo discurso mentiroso, violento, covarde e oportunista que a extrema-direita tem espalhado pelo mundo, como se viu nesses dias em Espanha.