Livros em viagem
É um lugar-comum, este de os livros serem meio de transporte, ainda por cima juntando à deslocação espacial a viagem temporal. Sem limite de bagagem nem necessidade de vistos transfronteiriços, o lugar-comum é suficientemente diverso e potencialmente infinito para o abraçarmos sem receios.
Viajar por meio aéreo voltou a ser uma odisseia. A pandemia trouxe fronteiras fechadas, proibição de circulação, mais tarde chegaram os certificados de vacinação. É possível ir para longe, mas é arriscado: nunca se sabe se a situação epidemiológica muda de um momento para o outro e aquilo que era para ser um périplo por terras estrangeiras pode transformar-se numa espécie de quarentena. Depois, há as máscaras, medida de prevenção necessária, mas extremamente desconfortável se a viagem implicar horas em aeroportos à espera de uma escala. Restam as viagens por terra, a lembrar as grandes travessias continentais sobre carris – e talvez a resgatar uma certa ideia de viagem, mais lenta, mais ecológica, a deixar que a biologia se adapte à mudança gradual dos fusos horários. Restam, sobretudo, os livros, porque esses não falham. Entre a meia dúzia que escolhemos para esta edição da Blimunda, há comboios, boleias, percursos falhados, bagagens roubadas e até uma saga de deslocações onde, por necessidade imperiosa (mas não pandémica), nunca se entra num avião.
Disse-me um Adivinho
Tiziano Terzani
Tinta da China
Tradução de Margarida Periquito
A Ásia é lugar presente em vários volumes da colecção de Literatura de Viagens da Tinta da China, mas talvez o livro do jornalista italiano Tiziano Terzani seja a melhor escolha para visitar essa geografia, ou parte importante dela. É que Terzani viaja pelo Extremo Oriente sem qualquer vestígio de exotismo a invadir-lhe o olhar, o que talvez se explique pelo facto de aquele ser um território sobejamente conhecido para o autor, correspondente internacional de jornais como o Der Spiegel ou o Corriere della Sera que não só viveu muitos anos em diferentes países e territórios asiáticos como foi um dos poucos jornalistas ocidentais a acompanhar no local momentos como a queda de Saigão às mãos dos Viet Cong ou a ocupação da capital do Cambodja pelo Khmer Rouge. Neste livro, o autor mantém a curiosidade e o rigor exigidos pela sua profissão como guias, mas aproxima-se mais de um registo autoral, subjectivo, reflectindo simultaneamente sobre o que vê e vive, sobre os factos, mas também sobre o impacto que esses factos têm em si. A viagem, que atravessa um vasto e diversificado território, surge como uma espécie de missão, auto-imposta depois de um adivinho, em Hong Kong, vaticinar que 1993 seria o ano em que Terzani poderia perder a vida num desastre aéreo. Céptico em relação às artes divinatórias, mas ainda assim temeroso, porque nunca se sabe, o autor viajará por diferentes países sem nunca recorrer ao transporte aéreo. Esse é o modus operandi que transformará a viagem numa demanda por si próprio, mas também numa reflexão sobre as culturas que compõem o mosaico asiático, as mudanças sociais e económicas que afectaram diferentes países de diferentes modos, o convívio, por vezes anacrónico, entre o último grito da modernidade e os vestígios de culturas tradicionais que têm na figura do adivinho um pilar. Disse-me um Adivinho é bem capaz de ser um dos livros imprescindíveis para se ler antes de pisar qualquer parte do Extremo Oriente. E também aquele que temos mesmo de ler se nunca tivermos a sorte de lá pisar.
Viagem ao Sonho Americano
Isabel Lucas
Companhia das Letras
As doze reportagens que compõem o coração deste livro foram publicadas no jornal Público, uma por mês ao longo de um ano, entre 2016 e 2017. A jornalista e crítica literária Isabel Lucas propunha-se a atravessar os Estados Unidos da América em diferentes direcções, cobrindo o amplo território físico deste país, mas a travessia era também metafórica, feita a partir de um conjunto de livros, confirmando que a literatura é um modo ímpar de conhecer um lugar, de o perscrutar, de descobrir coisas ao mesmo tempo que se acumulam perguntas, dúvidas, incompreensões. Da Newark de Philip Roth às terras do Sul de Toni Morrison, sucedem-se os livros e os lugares. Acompanhando as reportagens, há fragmentos de um diário de viagem que vão registando momentos, encontros e o ambiente político-social que acompanha a chegada de Donald Trump à Casa Branca, tudo indissociável do que a literatura continua a ecoar, mesmo que em páginas escritas muitos anos antes desta viagem, mesmo que em livros – como os da poesia de Walt Whitman, bardo que se confunde com a própria terra norte-americana – que nem sequer fazem parte dos escolhidos para as reportagens, mas que povoam, ainda assim, cada página deste volume.
O Grande Bazar Ferroviário
Paul Theroux
Quetzal
Tradução de José António Freitas e Silva
Uma bíblia para os amantes de comboios, este livro de Paul Theroux começa em Paris e percorre várias linhas férreas assentes no continente asiático, da Turquia ao Japão, passando pelo Irão, Paquistão, Índia, Vietname e tantas outras paragens a comporem um quadro em movimento, sobretudo visto a partir dos carris, mas com incursões a pé por vários lugares. O foco na viagem propriamente dita faz deste um livro de viagens naquele sentido mais amplo e interessante, não tão atento à listagem de lugares e acontecimentos, mas totalmente entregue ao registo do percurso propriamente dito e às deambulações mentais que daí vão surgindo. Nos vários comboios que apanha para ir construindo o trajecto, Theroux tem embirrações e desilusões que cheguem, ora porque não lhe reservaram a carruagem que estava prevista, ora porque a comida é intragável. Pelo meio, há vizinhos de carruagem cheios de histórias mal contadas e revisores que oscilam entre a simpatia extrema e a misantropia desbragada, tudo tão essencial a esta narrativa como os elementos históricos que o autor vai introduzindo ou os apontamentos sobre paisagens, edifícios, hábitos de cada local. Podemos ler O Grande Bazar Ferroviário para conhecer a longa extensão geográfica que define a Ásia, mas o coração deste livro é, na verdade, a longa extensão mental e emocional que foi definindo o autor entre tantas trocas de comboio e inúmeros carris palmilhados sobre rodas de ferro. Será um livro sobre a Ásia, mas será acima de tudo um belo elogio às viagens lentas, cheias de imprevistos e marcadas pelo indelével romantismo da viagem de comboio.
Caderno da América Latina
Eduardo Salavisa
Edições Afrontamento
Foram vários os cadernos de viagem desenhados que Eduardo Salavisa publicou, resultado de percursos por diferentes lugares do mundo, sempre muito longe da ideia de bilhete-postal. No seu trabalho, o desenho assumia-se como ferramenta para observar, pensar e reconstruir o visto e o vivido, num gesto que era de anotação, mas também de reflexão sobre o que o rodeava enquanto desenhava. Este livro, em edição bilingue (português e espanhol), integra desenhos realizados ao longo de uma viagem de nove meses pela América Latina e nele desfilam paisagens e monumentos, mas também ruas desertas, momentos do quotidiano, o movimento das pessoas num café, numa estação de comboios, num mercado. Em Pasto, na Colômbia, o autor foi assaltado, tendo perdido seis cadernos. Como descreve Héctor Abad Faciolince no prefácio, “os cadernos já estavam cheios e continham desenhos, aguarelas e apontamentos feitos ao longo de três meses de viagem”. Um apelo lançado nas ruas de Pasto e ecoado nas redes sociais, oferecia recompensa pela devolução dos cadernos, mas tal nunca aconteceu. Caderno da América Latina é, por isso, um volume que se compõe dos desenhos que nele figuram, mas igualmente dos que não puderam integrá-lo, uma espécie de dor fantasma que só nos permite imaginar o que seriam os registos que aqui faltam, mas que nem por isso os afasta definitivamente das páginas deste livro.
Líbano, Labirinto
Alexandra Lucas Coelho
Caminho
O novo livro de Alexandra Lucas Coelho cruza notas de viagem, trocas de correspondência na era do WhatsApp, reflexões históricas sempre enquadradas pelo olhar de quem escreve e algumas reportagens previamente publicadas no jornal Público, na sequência da grande explosão que aconteceu no porto de Beirute, em 2020. Há, no entanto, explosões prévias a abanar este volume, das negociações geo-políticas que resultaram na definição de fronteiras do actual Líbano à actuação do governo de Israel, com impactos que vão da criação e crescimento do Hezbollah aos campos d refugiados palestinianos no país, passando pelos acordos tácitos que colocam a governação libanesa nas mãos dos grupos sociais, económicos e religiosos que nunca abandonaram o poder. É neste contexto que surgem a revolução de 2019, que conduzirá à queda do governo, e desse movimento nascerão novos movimentos, perguntas e dúvidas, unindo uma imensa parte da população em torno da construção de outra sociedade. Que sociedade? Não é consensual, mas por vezes, como bem se reflecte neste livro, o gesto mais relevante não é o que dá as respostas, mas aquele que faz as perguntas.
Trieste e o significado de lugar nenhum
Jan Morris
Tinta da China
Tradução de Paulo Faria
A colecção de literatura de viagens da Tinta da China chegou recentemente ao seu 50º volume com o derradeiro livro escrito por Jan Morris, autora de dezenas de livros, muitos deles sobre viagens ou lugares. A autora manteve com a cidade italiana de Trieste uma relação duradoura, tendo começado a visitá-la no final da II Guerra Mundial e regressando várias vezes, o que permitiu ir acumulando histórias e considerações sobre o lugar. Com o passar dos anos, essas histórias acabaram por compor uma longa reflexão sobre o tempo, a vida e os modos possíveis de a atravessar. Na verdade, Trieste e o significado de lugar nenhum é sobre Trieste, mas também sobre os muitos lugares que Morris visitou ou onde viveu. Ou talvez não seja exactamente sobre esses outros lugares, mas antes sobre o que a passagem por eles e as vivências aí acumuladas foram criando em Jan Morris, confirmando que somos também os sítios que atravessamos e aquilo que neles recolhemos. A dada altura, a autora diz sobre Trieste que «é aqui, mais do que noutro lugar qualquer, que recordo o tempo perdido, as oportunidades perdidas, os amigos perdidos, com uma doce tristesse que é uma onomatopeia deste lugar». A história, a localização geográfica, ali à beira de tantas fronteiras e de uns quantos impérios, a organização urbanística, tudo isso faz da cidade o osso deste livro, e Morris não evita contextualizações históricas que ajudam o leitor a perceber o papel de Trieste na sua geografia, mas é a viagem interna que realmente estrutura estas páginas, uma viagem feita de muitas paragens em diferentes paisagens e de uma relação atenta com a passagem do tempo, muito mais do que pelo espaço.