Espelho Meu Andreia Brites 4 Agosto 2021

Migrantes
Issa Watanabe
Orfeu Negro

É um livro silencioso. Sem uma única palavra, excepto a do título. Desconcertante, o silêncio soa a dignidade. A dignidade da verticalidade dos que caminham, mesmo quando as costas se quebram, como acontece com o rinoceronte. Também soa a dor, a angústia, a medo. Ou simplesmente a vazio. Um vazio meta-narrativo que leva o silêncio de volta para a história e a adensa.

É um livro sobre quem é forçado a partir para outro local. É sobre uma marcha violenta, imprevisível, perigosa, real.

A ilustradora peruana Issa Watanabe preenche todas as páginas a negro, tornando o contexto da viagem opaco, apesar da cor que, aqui e ali, adoptam os ramos e os troncos das árvores que os animais deixam para trás. Também o mar que atravessam num barco sobrelotado permanece negro, num infinito indistinto. É o grupo que alimenta a cor do álbum, com as diversas matizes dos corpos e os panos vibrantes com que alguns se cobrem. Na viagem, descrevem-se momentos paradigmáticos: o da organização e entreajuda quando param para comer e dormir, num acampamento improvisado, o da travessia, o do naufrágio, o da perda de objetos que transportam, o da morte de alguém que não sobreviveu à catástrofe, o da chegada a um local de esperança onde as árvores já têm folhas e frutos vermelhos.

Muita da densidade narrativa alimenta-se das interações entre as personagens, do movimento dos corpos que se amparam, dos animais de maior porte que transportam ao colo outros mais frágeis, de abraços, mãos dadas, bocas que pronunciam esgares ou gritos, olhos abertos de espanto ou semicerrados de tristeza.

Porém, o elemento maravilhoso traz um mistério que deixa questões. A morte, transvestida num esqueleto coberto com um manto florido, é a primeira personagem da narrativa. Surge acompanhada de uma imensa ave azul, de bico e patas vermelhas que a traz do céu para o chão da floresta onde está uma mala. É com a mala na mão que a morte se aproxima do grupo e manifesta a sua intenção de o acompanhar. Haverá um jogo de manipulação, fazendo a morte passar-se por um migrante?

Mais à frente, a morte parece oferecer um ramo de folhas mortas ao urso polar. Em seguida, durante a travessia, a morte segue os migrantes ao longe, transportada pela ave, em segurança. E finalmente aparta-se dos restantes quando fica junto daquele que não sobrevive. Há uma ironia constante na presença desta personagem que a figura imponente da ave torna ainda mais imperativa.

Os vazios, as questões, o impacto formal da disposição das personagens, quase sempre de perfil e em movimento, a relação entre a cor e o preto, tudo contribui para o desconcerto narrativo a partir de um tema duro e premente. Não há conforto nem maniqueísmos morais. Não há eufemismos nem sensacionalismos. Há respeito por todos os leitores de todas as idades. Há desconcerto, como a arte e a vida fazem acontecer.

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