Saramaguiana
por Pilar del Río 22 Novembro 2024
Pilar del Río © Alfredo Brant

Liberdade de criação e encontro

No dia 27 de outubro de 2024, Pilar del Río participou na 16ª edição do Congresso Português de Psicodrama, no Douro. A Blimunda publica a intervenção da presidenta da Fundação José Saramago, que teve como tema a liberdade 

Escreveu José Saramago que a palavra, conceito e vocábulo mais interessante e necessário é NÃO. Que para avançar, sentir e conhecer é preciso dizer NÃO muitas vezes, porque essa atitude pode evitar que caiamos no conformismo, no dogmatismo ou, até, baixando muito o nível, no ridículo. Que é o que me aconteceu agora: tinha que ter dito NÃO a estar aqui, porque o convite tão generoso que recebi não corresponde às minhas escassas possibilidades. 

Aceitei porque a amizade anulou as minhas capacidade e até a lógica:

Queridas autoridades, 
Queridas amigas e amigos,
Querida direção do Conselho de Estudo de Psicodrama,

Estão a ouvir uma aficcionada da cultura, sem nenhum atributo visível, salvo a curiosidade pessoal e a esperança em vocês. Sendo assim, começo, ainda que com um outro esclarecimento: o motivo pelo qual, sendo portuguesa de nacionalidade, ou seja, voluntariamente portuguesa, e tradutora do português para o espanhol, não falo em português, será por imperialismo? Por falta de respeito? Não outra vez: respeito tanto a língua portuguesa que não quero manchá-la com uma fraca pronúncia. Traduzo-a, leio-a, sigo-a em todos os seus sotaques, honro-a, mas não a falo. E peço que também não me falem em espanhol, nem a mim nem aos nossos vizinhos, com a desculpa de que não entendemos o português. Se lhes facilitarmos as coisas, nunca o entenderão. 

Podemos e devemos expressar-nos nos idiomas nos quais sonhamos, sendo, como são, tão próximos, basta fazer imersões linguísticas de poucas semanas para nos entendermos. Temos a sorte de que na Península Ibérica sejam falados cinco idiomas oficiais, reconhecidos internacional e institucionalmente: o português, o espanhol, o galego, o catalão e o euskera. Esta riqueza é um bem a ser conservado, esqueçamos já os que nos querem de costas voltadas e façamos, alegremente, cada um com o nosso idioma, uma bonita fraternidade. Porque falar cada um o seu idioma e, assim, entender-se, é a melhor forma de viver em harmonia. 

Liberdade e criação, foi-me dito, fale sobre isso, e eu entendi que deveria falar do ar que respiramos, porque sem liberdade seríamos rebanhos conduzidos ao matadouro ou ao centro comercial, e sem criação seríamos o mesmo rebanho, para além do mais sem brilho nos olhos, portadores de catecismos deteriorados ou simples suportes de dogmas caducos. 

Pode-se viver a contracorrente, pode-se viver em solidão, com tristeza e desamparo, mas não se pode viver sem a liberdade de ser singular, de poder dizer NÃO, reconstruindo-se diante do sistema. Escreveu Esopo há milénios esta fábula:

Um cavalo decidiu vingar-se do veado que o havia ofendido e começou a persegui-lo. Logo percebeu que não poderia alcançá-lo e pediu ajuda a um caçador, que lhe disse: Se desejas dar caça ao veado, deixa que te coloque este ferro entre as mandíbulas, para poder guiar-te; e deixa que te coloque esta sela sobre o dorso para que te possa cavalgar. O cavalo concordou e com a ajuda do caçador não demorou a alcançar o veado. Então, disse ao caçador: Bem, agora apeia-te de mim e tira-me este arreio. “Não tão rápido, amigo”, disse o caçador. Agora que tenho as rédeas e tenho esporas, prefiro ficar contigo como um presente”. 

Como presente e como posse, assim parece que estamos, os seres humanos, no sistema em que vivemos, que nos quer submissos, resignados, indiferentes ou amedrontados. Vejamo-lo juntos e devagar: o modelo proposto pelos invisíveis e eficazes criadores de opinião dá-nos a escolher entre estas possibilidades: – indiferentes diante do destino dos demais; – assustados diante da possibilidade de perder o pouco que temos; – submissos diante das normas e desgraças que nos são impostas; –  resignados diante da fatalidade de termos nascido e a vida ser assim.

Ou seja, seres conformados, não levantados do chão, mas deixando-se viver e morrer agradecidos porque “a vida é assim”. 

E é agora que chega o NÃO forte e rotundo de que falava no início, unido ao possível e desejável orgulho de ser cada um por si mesmo. Capazes de construir, com outros, que são nossos iguais e semelhantes, sociedades plurais, participativas, ativas, democráticas, limpas. Poderíamos fazê-lo?

Pilar del Río © Alfredo Brant

Podemos, mas é preciso destruir o modelo de submissão que cada dia exerce a sua influência sobre nós, demasiadas vezes simples espectadores do que se passa. Para citar um doloroso exemplo: estamos a assistir a um genocídio como se fosse um jogo de ténis, primeiro de um lado, agora do outro, tantas vítimas aqui, tantas ali, e pronto. Não podemos fazer outra coisa, repete-se todos os dias. O que se passa? Já não temos voz para dizer “Não à Guerra” em todas as ruas e cidades do mundo? Seremos dignos se não reclamarmos por voz ativa e passiva que se acabe o genocídio? Se não dissermos que as fronteiras e as bandeiras explicam sociedades, mas não são argumento para matar? Podemos viver tranquilos vendo como se prepara a destruição massiva de seres humanos, países e continentes?
Na Era da Inteligência Artificial é duro reconhecer que não existe inteligência humana suficiente para solucionar os conflitos, negociando, não matando como na época em que vivíamos em cavernas. Ainda que o problema não esteja na falta de conversas, mas sim na abundância de armas. Se existem fábricas de armas terão que existir, ao lado, as fábricas de conflitos, uma vez que ninguém fabrica o que não é para ser vendido. E se as armas são sofisticadas, os conflitos também terão de o ser. Ou seja, nada de Nações Unidas, nada de Papas em Roma ou Acordos em Oslo por Israel e Palestina, o que manda é o negócio e as vozes de boa vontade – com tão pouco valor no mercado – não o vão estragar, dizem os que mandam quando ouvem António Guterres ou o Papa Francisco. E são criticadas ambas vozes, enquanto os demais permanecemos alienados em silêncio.

A cultura, o pensamento, a filosofia, a arte, a música, são instrumentos que nos fazem mais fortes diante do barulho e da demagogia. Dizer NÃO à brutalidade canalha da guerra, à condenação à fome e ao desespero a que tantos estão submetidos, é um sinal de humanidade que todos podemos assumir, como o fez aquela jovem mulher chamada Blimunda, que passou por estas terras nove vezes em busca do seu marido, de Baltasar, preso por ter achado certa a teoria do padre Bartolomeu de Gustão que dizia que juntando vontades os seres humanos poderiam voar, e por isso ele, simples trabalhar e militante de um sonho, foi queimado pela Inquisição, mestra dogmática e sem graça, que também condenou ao exílio a mãe de Blimunda, considerada bruxa talvez por ensinar a filha a ler papéis e corações, a ser livre na vida, no amor, na morte. 

José Saramago pôde escrever «Memorial do Convento» porque no dia 25 de Abril de há 50 anos homens e mulheres decididos foram capazes de dizer NÃO a um sistema que não queria cidadãos, mas sim gente conformada.

Fez-se a Revolução e desde então usa-se a palavra para dizer -e dizer-se- que ao relato da história universal é necessária a nossa voz, não somos objetos dirigíveis, temos uma voz própria, que aqui foi usada estes dias e muito bem. 

Quando o 25 de Abril aconteceu não havia malas com rodas, nem vídeo-conferências, nem férias para quem trabalha, nem tinha surgido a plêiade de escritores e escritoras que fazem Portugal ser um país com identidade querida e reconhecida. A liberdade foi um movimento que dinamizou a identidade, que beijou desprotegidos e acariciou sem medo outras formas de vida. Que não nos digam que essa página já está escrita e que agora se trata do individual, de cada um na sua casinha, na sua coisinha, na sua vidinha.

NÃO: o egoísmo nas sociedades também é provocado, a falta de empatia nas sociedades é imposta porque é cómoda para os poderes económicos, ricos mandando em pobres; ou seja, o sistema. “O outro é como eu e tem o direito de dizer eu”, escreveu um sábio, mas os criadores de opinião ao serviço do sistema alimentam o ódio, a homofobia, a misoginia, o racismo, a violência, o nazismo como fórmulas mágicas para que cada um olhe só para si. Mas aqui, nestes dias, vimos que a liberdade criativa é possível e que o nosso destino, se assim o quisermos, não é sermos cegos, “cegos que, vendo, não veem”, como escreveu o autor antes citado, que pôde ser criador porque homens e mulheres instalaram a liberdade na sociedade. Liberdade a manter e a aperfeiçoar todos os dias, diante das correntes anuladoras dos mais belos conceitos e das melhores iniciativas que a humanidade foi acumulando para que, antes de tudo, pudéssemos ser felizes.

Insisto, e com isto acabo: a felicidade não é um conceito que esteja na moda, não se fala dela, mas mora nos nossos desejos e corações, para além de ser, claro, um conceito político.    

Pregar pela felicidade é desterrar a violência e a morte, desistir de guerras promovidas por guerreiros néscios, fabricantes do mal, seres obscuros que ameaçam e executam, que interrompem a vida. Falar – e atuar – e propor a paz, entendimento, convivência, pluralidade, arte e liberdade, é criar condições. Nestes dias, a partir das universidades, igrejas, sociedades, partidos, grupos desportivos, bairros, empresas, de todos os lugares devemos reclamar a paz. Todas as nossas vozes são necessárias para que floresça a vida sem os espaços de horror e de vingança que sofremos no Planeta. E que tanto dano provocam aos seres humanos.

“A paz é possível se nos mobilizarmos para ela: nas consciências e nas ruas”, escreveu José Saramago. A paz é necessária. Que não nos enganem dizendo que não somos nada: aqui estamos, seres únicos, irrepetíveis, poderosos. Que se ouça a nossa voz.

Exerçamos o nosso poder cívico, redentor de tanta miséria, amoroso: frente aos déspotas lúgubres façamos soar a vida. Assim, talvez, os melhores conceitos expressos aos longo do tempo ocupem o seu devido lugar. A humanidade merece-o. 

Obrigada.