Crítica Sara Figueiredo Costa 30 Dezembro 2025

Liberdade a sério

Depois de A Paz, o Pão, Habitação, Saúde, Educação, volume coordenado por Tiago Manuel e editado pela Universidade do Minho, que reuniu bandas desenhadas de Amanda Baeza, João Fazenda, António Jorge Gonçalves, Mariana Pita e Mariana Rio, o cantor e compositor volta a ser ponto de partida para um livro colectivo de banda desenhada. O Meu Sérgio é igualmente um projecto de Tiago Manuel, agora com produção da Motor Produção Cultural – cooperativa de responsabilidade limitada, e com a curadoria de Marcos Farrajota, sendo que este livro teve uma exposição, onde se mostraram as pranchas que o integram, e essa foi da responsabilidade de Antonio Gonçalves. Outro elemento comum aos dois livros é o design de Jorge Silva/ Silvadesigners, reforçando os diálogos possíveis entre os dois volumes.

A primeira banda desenhada de O Meu Sérgio é da autoria de José Smith Vargas e encena, de algum modo, aquilo que terá sido o processo de realização da capa do álbum Campolide, gravado em 1979. Trata-se, como é sabido, do disco que tem na capa um Sérgio Godinho espreitando pela janela de um comboio e o que Smith Vargas faz a partir do que se sabe sobre esse processo é um bom prelúdio para o que se guarda nestas páginas a várias mãos. Longe da tentação biográfica e hagiográfica, ainda mais longe de um entendimento rasteiro sobre a banda desenhada enquanto ferramenta de simplificação (tão comum em projectos que cruzam BD e biografia), este livro é um espaço de liberdade, construído colectivamente, onde as vozes individuais não se perdem, mesmo quando cantam em coro. E esta voz individual, a que nos conta a história de como José Brandão, que com Salette Brandão havia fundado há pouco o atelier de design B2, chegou à capa de Campolide, mas também ao miolo desse formato álbum de vinil, capa cartonada e aberta, que permitia um trabalho gráfico e visual único.

© Jose Smith Vargas

Esta primeira história é a mais explícita referência a essa ligação entre banda desenhada e música de que Marcos Farrajota fala no ensaio que abre este livro, lugar de cruzamentos onde podemos encontrar ligações múltiplas, quer no espaço de língua portuguesa, quer a nível internacional. São dez pranchas que convocam Sérgio Godinho, naturalmente, a sua obra e os impactos vários na nossa vida, mas também o design, o trabalho de criar, compor, imaginar uma capa, e tudo o que pode estar por trás desse gesto, todas as ligações, todos os pensamentos, também os acasos. E é esse longo rol de matérias-primas de uma vida que vai desfilando pelas bandas desenhadas que se seguem.

© Mariana Pita

Em cada uma destas histórias, assume-se a dupla condição que a obra musical de Sérgio Godinho faz ecoar na história da música, da sociedade e da cultura. Por um lado, as canções fazem parte da memória viva de muitas pessoas (de todas as boas pessoas, seria tentador escrever…), integram vidas, momentos, episódios mais corriqueiros ou mais grandiosos que, com uma ou mais canções em pano de fundo, surgem na memória como coisa única, individual. Por outro, fazem parte de um imaginário colectivo, não só porque várias destas canções integraram aquele cancioneiro umbilicalmente ligado ao 25 de Abril, mas porque boa parte de todas as outras canções gravadas pelo autor ao longo das décadas foram pontos essenciais num diálogo – por vezes a tantas vozes que pode ter-se transformado em cacofonia, o que não é necessariamente mau – sobre quem somos, o que queremos e o que andamos para aqui a fazer.

© Joana Mosi

Na banda desenhada de Joana Mosi, esse duplo carácter das canções de Sérgio Godinho é linha de força narrativa, revelando-se a dificuldade de expressar de modo arrumado e facilmente transmissível a outras pessoas esse espaço gigante que o cantor ocupa em tantas vidas, mesmo que não conheça a esmagadora maioria do indivíduos que o carregam na memória, nas esperanças, nas dores e nos dias. Mariana Pita e João Marcelo dividem a autoria de uma história onde não só a obra do autor e a sua existência presente é elemento diegético (João Marcelo participará num concerto de homenagem a Sérgio Godinho, gatilho para o que se seguirá), como algumas canções e o seu respectivo universo serão responsáveis pelo avanço e pelas peripécias narrativas que levam uma velha guitarra nas suas voltas improváveis.

© Pedro Burgos

Já o preto e branco de linha clara usado por Pedro Burgos utiliza versos de diferentes canções de Sérgio Godinho para compor um instantâneo contemporâneo, um olhar atento e crítico sobre os tempos que partilhamos. A composição das pranchas, cada uma enquadrando um espaço partilhado – uma rua, o interior de uma carruagem de metropolitano, um jardim –, permite uma dupla leitura: o cenário completo, mas também a sequência de momentos dentro desse espaço, criando um movimento potencialmente narrativo. Por aqui passam as pessoas que dorme na rua (cada vez mais), o problema da habitação, a pobreza que atinge mesmo quem trabalha e recebe um salário, mas nem assim pode pagar uma casa, os imigrantes encostados à parede, na rua do bem Formoso ou em tantos outros sítios. Também há esperança nestas páginas, atravessadas por pedaços líricos que ora reclamam «a paz, o pão, a habitação, saúde, educação», ora lembram que «hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há». Seria fácil resvalar para a mera lista de versos, mas o trabalho de Pedro Burgos escapa com brio desse lugar-comum e cria uma narrativa que recorta a linha do tempo e nos obriga a olhar para o presente, mostrando-o único e por transformar, mas que, sem contradição, também sublinha o que não muda ao longo do tempo, mesmo que com diferentes protagonistas: dores, amores, velhice, «dói-me a parte interna de uma perna».

© Tiago Baptista
© Alexandra Saldanha

A estas histórias juntam-se outras, de Tiago Baptista, Rodolfo Mariano, Maria João Worm e Alexandra Saldanha, conferindo a O Meu Sérgio uma outra faceta, pouco ou nada relacionada com a obra musical que aqui se evoca, a de constituir uma pequena, mas significativa, montra da banda desenhada portuguesa que se vai fazendo por estes dias. Que o faça a partir do património criado por Sérgio Godinho e devidamente apropriado, individual e colectivamente, por tanta gente, é também revelador das infinitas linhas de diálogo, pensamento e desinquietação que o cancioneiro sergiano (já se pode dar um nome, mesmo que não seja este?) contém, umas vezes literalmente, outras numa potência infinita que espera ser activada, e isto quer falemos de canções com décadas ou de canções acabadas de gravar. Não espanta que tenham sido alguns dos autores e autoras com trabalhos mais inovadores, experimentais e interessantes da banda desenhada a activar essa potência, confirmando-lhe os contornos de coisa conhecida, pela qual temos um afecto desmesurado que partilhamos com gente cujo nome desconhecemos, e também de coisa inesperada, capaz de desatar histórias e abrir caminhos que não anunciam aonde vão chegar.

© Rodolfo Mariano

© Maria João Worm

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