José Feitor e a História da Fome: “Somos todos consumidores com tendência para a engorda”
O novo livro de José Feitor, História da Fome (Imprensa Canalha), é um ensaio duplo, verbal e visual, sobre a nossa relação com a ingestão alimentar e a acumulação – insaciável e sempre voraz – de quase tudo.
Gostamos de dividir o mundo em compartimentos bem etiquetados, inicialmente para melhor discutirmos e pensarmos sobre um absoluto que precisa disso para se deixar abarcar, depois, muitas vezes, porque se torna confortável não levar o pensamento além das divisões. O espaço da edição de livros é um bom exemplo de tudo isso, divisões etiquetadas e movimentos inexplicáveis, apocalípticos, integrados e os que rejeitam essas etiquetas e preferem outras, barricadas que se erguem e transversalidades que afastam exclusões definitivas. É complexo, dir-se-ia para simplificar. O caso é que essas divisões, mesmo com as suas migrações e transumâncias, parecem impedir alguns reconhecimentos. Ou talvez não seja esse o caso, talvez os reconhecimentos não sejam objectivo quando os imaginamos em jeito de aplauso colectivo, contrato de edição e distribuição, prémio final. Os mundos misturam-se e evitam-se, contaminam-se e ignoram-se, tudo ao mesmo tempo. É complexo e dizer isso não é simplificar.
Toda esta introdução para falar do trabalho de José Feitor, autor de livros e fanzines com imagem e texto, ilustrador, editor na Imprensa Canalha, também impressor da velha guarda, dominando a serigrafia e outras técnicas a que chamamos tradicionais, mas que ainda aí estão, prontas para aprender e usar. Quase todo o seu trabalho está publicado em livros, fanzines, cartazes e outros objectos que não se encontram nas grandes cadeias livreiras, tornando-o desconhecido dessa entidade sem rosto (e de caracterização mais do que discutível) a que chamamos “grande público”. Sim, pelo meio há um livro ilustrado para a Caminho (O Noitibó, a Gralha e Outros Bichos: bestiário para as crianças, com texto de Francisco Duarte Mangas), mas se há coisa em que o mercado editorial de grande porte é pródigo é na voracidade com que cospe novidades para logo depois as fazer desaparecer nos armazéns de livros, dando lugar às novas novidades, tudo num período curto, demasiado curto. De qualquer modo, todos os livros, fanzines e publicações várias são colocados à venda num determinado momento, ou em vários, pelo que não se trata aqui de um ambiente clandestino, ou pensado para meia dúzia de eleitos, mas sim de espaços, hábitos e modos de ler e partilhar leituras que pouca gente escolhe conhecer, seja porque motivo for (e serão vários os motivos, certamente). O que se quer sublinhar, sem entrar em mais digressões analíticas sobre de que modo leitores e livros se encontram e qual o papel do mercado e das suas muitas dimensões nesse encontro, é que o trabalho de José Feitor merecia encontrar mais leitores. Isto, claro, é uma apreciação crítica e carregada de subjectividade. E certa de não converter ninguém para além dos convertidos, mas ainda assim cumprindo um dever de alertar leitores exigentes que nunca se tenham aventurado para além das livrarias mais ou menos regulamentares.
Há já algum tempo que José Feitor vinha apresentando imagens sobre o tema da fome, mostrando pedaços de um trabalho em construção. Eram ilustrações, por vezes em suporte de serigrafia, onde glutões pantagruélicos deglutiam toda a espécie de coisas, de alimentos a pedaços de orgãos, instalando uma imagem de voracidade insaciável. Sabia-se que essas ilustrações haveriam de integrar um volume intitulado História da Fome, mas o conteúdo e a estrutura de tal volume estavam por descobrir, o que não impediu a criação de alguma expectativa entre os frequentadores de feiras de fanzines e publicações de pequena tiragem, espaços dedicados às artes gráficas, conversas de café à volta destes espaços. Agora, História da Fome está aí, numa tiragem de 250 exemplares, carimbados e numerados, e com chancela da Imprensa Canalha, editora fundada por Feitor. O formato é A4, com capa em serigrafia, impressa no Estúdio Trovoada, e miolo em offset, a duas cores. A acompanhar a publicação do livro, há uma exposição para ver em Lisboa, até ao próximo dia 22 de Dezembro, no espaço Corrente Arroios. Ali se mostram as ilustrações originais que integram o livro, bem como outras, entre originais e serigrafias, que foram acompanhando o seu fazer.
Esta História da Fome percorre momentos fundamentais na cronologia da nossa relação com os alimentos, como a sedentarização e a agricultura, o domínio e o uso do fogo e a industrialização, mas mais do que historiográfica, a sua abordagem é ensaística, algo que já acontecia em trabalhos anteriores de Feitor, e relaciona a ingestão de alimentos, necessidade fisiológica, com a vontade de acumulação que foi definindo as nossas sociedades. À Blimunda, o autor explicou o percurso que este livro foi fazendo antes de existir materialmente: «Sempre me intrigou a maneira como usamos a palavra, que tanto nos serve para falar de carência fisiológica como se presta a nomear todo o tipo de apetites e inclinações, muitas delas estruturante e obsessivas. Assim que a ideia me surgiu, surgiu de imediato o título, por predisposição para tentar fazer desta narrativa uma análise que trespassasse o tempo. Contudo, a ideia sempre foi focar-me naquilo a que estes apetites nos conduziram, à situação actual, como fiz noutros textos. A ideia de História, aqui, é a isso que se presta: olhar com horror para trás para compreender a forma em que nos encontramos, a degradação a que os nossos apetites conduzem. É óbvia a colagem entre a ideia de querer comer, apesar de não se sentir qualquer carência, com a ideia de possuir, mesmo que tal não sirva para satisfazer nenhuma necessidade concreta.»
No decorrer desse percurso que não obedece a rigores de tábua cronológica, Feitor começa pelo tempo imemorial em que a fome dos seres humanos não era diferente da dos animais. Com a aprendizagem da agricultura e a sua inserção no ciclo anual das estações, chegaram as colheitas e o seu possível armazenamento, e é aqui, já com a sedentarização como dado adquirido para boa parte dos seres humanos, que começa um outro modo de relação entre os humanos e a sua necessidade de comer, entretanto elevada a outra categoria, a da acumulação incessante.
Pelas páginas vão desfilando figuras pantagruélicas em devoração opípara, carantonhas que por vezes remetem para máscaras do Nordeste transmontano (e que já surgiram noutros trabalhos do autor) ou para certas iluminuras satíricas medievais, esqueletos numa dança da morte feita ao ritmo da ingestão de acepipes vários. Há símbolos – maçónicos, religiosos, mitológicos, políticos – e remissões, textuais e visuais, para as classes dominantes ao longo dos tempos, da Igreja ao grande capital. História da Fome é uma reflexão que cruza política, cultura e sociedade, e é também um libelo com ecos novecentistas, lembrando folhetos saídos de imprensas mais ou menos clandestinas, um J’Accuse, de Émile Zola cruzando-se com as gravuras de William Blake (também ele impressor), os rostos e as imagens densamente povoadas de Brueghel com a sátira desbragada de certos folhetos de cordel, toda uma herança por onde passam textos, momentos históricos, máquinas de imprimir movidas a braços e alguma raiva.
Texto e imagem dialogam, mas têm um potencial de existência autónoma que não é comum em livros ilustrados. O texto sobreviveria como breve ensaio sobre a relação dos alimentos com o consumo, da fome com a acumulação, da voracidade com a manutenção de privilégios. Por outro lado, a força visual e simbólica das páginas ilustradas é, por si só, um espaço autónomo, capaz de gritar as suas angústias, dúvidas e inquietações sem necessidade de outras imagens ou de texto (e também por isso a exposição, que prescinde do texto e junta às imagens do livro algumas outras, é uma outra criação, não dependente deste objecto impresso). Ainda assim, como nos contou o autor, foi das palavras que nasceu esta História da Fome: «Desta vez o texto surgiu primeiro, apesar de em modo embrionário (refiz o texto muitas vezes, à medida que o processo decorria). A primeira versão foi escrita de uma penada. Depois limei tudo, lentamente, embora não tenha conseguido dar-lhe uma forma coerente e organizada. Reconheço alguma tendência para a repetição e muita desordem. Os desenhos, como quase sempre, resultaram de aturadas pesquisas. Comecei na Idade Média, com as representações da gula enquanto pecado capital, e nessa fase o Brueghel velho serviu-me de guia. Muitos elementos que surgem no livro, como os caracóis, vieram daí. Depois percorri outras referências, nomeadamente gravura satírica dos séculos XVIII e XIX, com Doré e o seu Pantagruel à cabeça, claro. Quem conhecer estas fontes vai reconhecê-las nos desenhos. Não há qualquer relação de complementaridade ou afinidade entre os desenhos e os textos, salvo raras exceções, como a representação do Génesis ou a ilustração para a imposição dos cereais na dieta humana. Mas, mesmo nessas, se calhar apenas eu vejo as conexões.»
São dois os capítulos que compõem este livro. O primeiro, intitulado “Hiperfagia”, dedica-se a esta análise histórica que nos traz dos excedentes agrícolas ao consumo transformado em desejo, divindade, mecanismo de controlo social. Por esse capítulo passam o Génesis bíblico e a Loba do Capitólio, as práticas religiosas mais antigas e a instituição da religião como mais um mecanismo de poder, a morte e o grande capital. No segundo, “Filogafia”, o foco está na reflexão sobre como o apetite pelo consumo e os seus diversos graus, definidos em função de uma escala social, se relaciona com o modo como vivemos em sociedade e com as escolhas políticas que fazemos (ou não fazemos, por vezes). Sobre isso, diz José Feitor: «Parece-me que este desejo de acumular, mas também de esbanjar e desperdiçar, é típico das sociedades massificadas, em que a maioria silenciosa se presta a ser governada por uma elite, desde que mantenha uma ligeira ilusão de que os pode emular. Foi esta ideia que eu levei para o livro. Somos todos consumidores com tendência para a engorda, porque assumimos colectivamente esta fantasia, a de querer imitar os que tudo têm e podem. E esses não passam de uma versão de nós próprios, apenas com outros meios para se sentar à mesa e encher o bandulho.»
Entre o excesso e o amor ao excesso, andamos há séculos a alimentar deglutições épicas. Está por saber se podia ter sido de outra maneira, mas como se descreve em História da Fome, basta passar algum tempo numa dessas «lanchonetes babilónicas» que se instalam no piso superior de algum centro comercial, e onde a corrida desenfreada ao ketchup e à possibilidade de o levar para casa é um dos desportos praticados, para perceber que talvez tudo isto faça parte do nosso devir colectivo. Entre ketchup em pacotinhos gratuitos e descartáveis e telemóveis que têm de ser sempre da última geração, é possível que se tenha esgotado o espaço e o tempo para outros modos de viver. Curiosamente, tudo indica que esse espaço e esse tempo estão a esgotar-se também para este modo, pelo que resta almejar que o futuro não seja parco em gente que nos conte o que vê em textos, imagens e o resto, e que reflicta sobre que se vai construindo para chamarmos de mundo.