Destaque Sara Figueiredo Costa 11 Novembro 2022
Fotos © David-Alexandre Guéniot

Íntimo e universal: O Livro da Patrícia

Em O Livro da Patrícia, David-Alexandre Guéniot parte do luto pela morte da sua companheira, a fotógrafa Patrícia Almeida, e traça um percurso sobre a relação entre fotografia e morte, ausência e presença, memória e futuro.

David-Alexandre Guéniot é um dos rostos da editora Ghost, cujo catálogo se tem construído com livros que cruzam a fotografia e o ensaio, a imagem e a palavra em modo de reflexão. O outro rosto era o de Patrícia Almeida, fotógrafa, e a relação de ambos foi ponto de partida para um dos livros da editora, Ma Vie Va Changer, publicado em 2015. Neste livro, um álbum de recortes familiares marcado pela presença da Troika em Portugal, pela crise económica e pela teimosia de inventar um futuro apesar de todos os fins de mundo que os noticiários debitavam diariamente, um futuro que seria de Gustavo, então com cinco anos, filho do casal e uma das personagens do livro, mas também do seu amigo Gaspar, quatro anos mais velho. No fundo, era um futuro que se reclamava para toda a gente, expondo o absurdo das decisões político-económicas e o seu impacto no dia a dia e contrapondo-o com uma inegável vontade de viver, como quem ri na cara dos burocratas que vão apertando o nó da economia.

Dois anos depois da publicação desse livro, Patrícia Almeida morreu, na sequência de uma doença que foi sendo vencida, mas que acabou por regressar. O Livro da Patrícia, que David-Alexandre Guéniot assina e agora publica, parte dessa morte e da ausência que se lhe seguiu, mas também da vida e dos projectos que foram sendo desenvolvidos. Num desses projectos, a fotógrafa planeava reunir material e reflexões para criar uma história pessoal da fotografia e esse foi um dos fios que Guéniot utilizou para tecer este livro tão difícil de classificar.

Nas páginas de O Livro da Patrícia há memórias partilhadas e uma tentativa de lidar com a ausência, mas há sobretudo um processo de pensamento, uma reflexão sobre as imagens – principalmente as fotográficas – e o seu papel no modo como nos relacionamos com a morte. É um livro pessoalíssimo, mas talvez todos os bons livros o sejam, sobretudo os que, como este, encontram sentidos universais no manejamento de matérias tão privadas.

Seria fácil e compreensível que a ideia de escrever a partir da morte da sua companheira acabasse por se materializar num livro íntimo, exclusivamente dedicado à própria dor, lamento individual cuja revisitação nos poderia ser pudicamente impossível. Na apresentação deste livro em Lisboa, na Galeria ZDB, o fotógrafo Daniel Blaufuks usou o termo “um livro a puxar à lágrima” para descrever precisamente o que O Livro da Patrícia não é. A dor existe e percorre algumas destas páginas, mas o livro que dela nasce é uma construção, sobre a dor, sim, mas também sobre a memória, o convívio com uma ausência, os sentidos que vamos encontrando no aparente sem-sentido da vida.

Casa comum

Na ZDB, para além do autor e dos convidados para falar sobre o livro (Daniel Blaufuks e a cineasta Catarina Mourão), havia um imenso grupo de pessoas que teriam conhecido Patrícia Almeida. O ambiente era de homenagem, mas nunca formal ou pesarosa, e o gesto comum que atravessou a sala foi o de conversar sobre O Livro da Patrícia, mais do que lamentar o que não pode ser mudado. Terá sido, portanto, um gesto semelhante ao que o autor conseguiu alcançar neste livro, pequeno objecto delicado que guarda abismos, esperanças e um apego férreo à necessidade de pensar e agir sobre o mundo. Quando começou a escrevê-lo, Guéniot não sabia, como disse à Blimunda numa conversa posterior ao lançamento na Galeria ZDB, que rumo se iria definir, mas o que agora podemos ler é o resultado de muita reflexão e de uma sábia transformação dos impulsos emocionais, íntimos e privados, em algo que convoca o leitor e com ele se partilha: «Acho que houve primeiro um impulso qualquer, a necessidade de escrever para pôr em palavras aquilo que estava a viver, e essa foi uma fase mais terapêutica. E há um perigo nessa fase, que é o de cair um pouco numa onda quase narcisista da dor, quase como se o sofrimento fizesse parte da identidade de quem sofre. Isso para mim era a linha vermelha, quando o íntimo passa a tomar conta do pessoal, e o que tentei foi que o íntimo fosse sempre pessoal, uma experiência evidentemente singular, mas exemplar, no sentido de ser um exemplo entre o de milhões de pessoas que passaram pelo mesmo. Interessava-me perceber onde estava o limite do íntimo e do pessoal, perceber quando uma coisa passa a ser pessoal e possível de ser partilhada com outras pessoas.» O pessoal, já se sabe, é político, e nesse sentido é partilhável no espaço comum, torna-se matéria de reflexão, passível de ser apropriada por quem dela se quiser aproximar.

A certa altura, surge a possibilidade de transformar todo esse processo num livro e de publicá-lo, momento em que essa fase terapêutica de que nos falou o autor já não tinha sentido: «A publicação, o tornar público, já não tem qualquer efeito terapêutico, aqui é preciso construir o objecto, que é outro tipo de lógica. Já não é uma lógica de expressão, mas antes de construção. E percebi que isso era possível porque havia essa espécie de ficção… o projecto da Patrícia [o livro que seria uma história pessoal da fotografia] estava ainda numa fase muito preliminar, mas permitia entrar em contacto com o leitor com essa ficção de um livro que era para existir, mas não existiu, e que estava ali a tentar reacender-se. Depois, havia a relação com o [Roland] Barthes, porque há uma série de notas da Patrícia sobre ele e foi uma leitura importante para ela se dedicar à fotografia. Havia esse livro de fotografia do Barthes sobre a morte da mãe [Câmara Clara] e com tudo isso pensei que havia ali mais alguma pista para eu poder desenvolver uma ideia mais de ficção, de relação com o outro, com o espectador, tentando fazer uma releitura do Câmara Clara à luz do que aconteceu com a Patrícia. Para mim, o que vai distinguir o largar da vertente terapêutica e a passagem para o lado mais pessoal vai ser a forma, que é ao mesmo tempo uma protecção e um espaço que posso construir para acolher o leitor. É um espaço construído pelos dois, de facto, por mim e pelo leitor, porque o lado intimista já tratei comigo, sozinho, em casa, e aqui já estou a propor uma casa comum com o leitor.»

O luto e as suas formas

O projecto que Patrícia Almeida tinha entre mãos, e que não chegou a poder desenvolver, aproximar-se-ia de uma história da fotografia, não académica, nem factual ou documental, mas pessoal. Em O Livro da Patrícia, esse projecto acaba por ganhar um caminho possível, diferente daquele que lhe terá estado na origem, mas ainda assim com pontos comuns. Neste livro estabelecem-se inúmeras relações com os textos de Roland Barthes sobre a fotografia e a morte, e também com alguns documentos sobre a evolução da técnica fotográfica e da recepção da fotografia. David-Alexandre Guéniot explica assim essa relação profunda que se foi estabelecendo à medida que escrevia: «Ao longo da escrita, fui percebendo que os textos tinham de ter uma relação com a imagem, com a ideia de fotografia, de representação visual. E fiz uma selecção a partir daí, deixando de lado algumas coisas que poderiam ter a ver com aquilo que sentia, mas que não tinham relação com esta ideia de imagem, por isso perderam o seu lugar no livro. O critério foi esse, manter-me na investigação sobre uma ideia de imagem a partir da ausência.»

Essa ausência, que é a de uma pessoa concreta, mas que acaba por ecoar como medida de todas as ausências que nos vão definindo a vida, transforma-se em presença, concreta, palpável, rodeando-nos até fazer parte de nós. É o resultado de um processo alheio, o do autor, em que nos reconhecemos, ou porque partilhamos uma experiência semelhante, ou porque sabemos que essa experiência é parte intrínseca do que somos, mesmo que possamos nunca a viver na primeira pessoa. «Este livro também é uma espécie de investigação para mim, ou seja, assumi um papel quase analítico, tentando desmontar o conceito de luto: o que é, como se vive, que tipo de lembrança fica, que tipo de presença é provocada por uma ausência», explicou o autor à Blimunda. «É um processo de investigação, procurar essa imagem ontológica onde a pessoa aparece, não só representada, mas quase encarnada, como se fosse uma espécie de duplicação da pessoa através da imagem, uma imagem milagrosa, quase um ícone. Essa procura é obviamente impossível, porque essa imagem não existe, mas foi uma investigação, uma tentativa de compreender como se convive com a ausência, que tem uma certa presença. Tem muito que ver com isso, uma ideia de investigação, de análise, feita por alguém que está a viver um determinado momento e a tentar, ao mesmo tempo, perceber o que está a viver. É um livro sobre um percurso.» E é um percurso que sabemos comum, onde também nos vemos.

Convocando o leitor

As dúvidas sobre quem seriam os leitores deste livro apresentaram-se a par e passo com a própria escrita. Diz-nos Guéniot: «Havia um texto no livro, que depois acabei por tirar, onde eu tentava perceber para quem escrevia. Para a família dela? Para a minha? Para os amigos? De facto, há uma espécie de necessidade de partilhar esse momento de fim de vida de alguém, e havia algum pudor por parte das pessoas, que continham a curiosidade sobre esse fim.» As origens de O Livro da Patrícia começaram por ser a forma encontrada para partilhar esse momento com as pessoas mais próximas, mas o livro enquanto estrutura, construção e objecto que acabaria por se tornar público, avançou noutras direcções: «Foi uma forma de partilhar esse momento com essas pessoas, também, mas passado esse ciclo, o livro pertence a outras pessoas. E aí, pelos comentários que já tive de quem foi lendo, acho que consegui abrir essa pergunta sobre como se partilha a morte de alguém. Percebi que, a partir do momento que se consegue tocar esse lado mais pessoal e criar uma plataforma que permita acolher o leitor na narrativa, no livro, é possível. E com este livro, recebi algumas reacções de pessoas que leram o livro e que não conheceram a Patrícia, mas que ainda assim gostaram do que leram, o que me confirmou tudo isto que disse antes. Para mim, é importante escutar essa experiência do leitor, porque eu não a posso ter, sendo o autor. Essa é a magia dos livros, eu poder devolver ao mundo alguma coisa que também veio do mundo e que me tocou.»

Agora, essa devolução está feita. O Livro da Patrícia está nas livrarias portuguesas, com selo da Ghost, e nas francesas, numa co-edição entre a Ghost e as Éditions Loco. Por estes dias, David-Alexandre Guéniot andou pela Polycopies, feira parisiense dedicada aos livros de fotografia, apresentando o livro ao público francês. Daqui para a frente, tudo o que se encerra nas trezentas e poucas páginas deste volume quase de bolso pertence ao mundo e aos leitores que ali queiram confrontar-se com as suas próprias ausências, as que lhes povoam o quotidiano ou apenas as que temem. E apesar do medo e do pudor com que olhamos a morte, O Livro da Patrícia não deixa de ser luminoso, aberto à honestidade de nos vermos a nós próprios sem temer fragilidades e firme na certeza de que nenhuma fotografia garante a eternidade. Confrontando a ideia salvífica de fotografia como triunfo sobre a morte, e desmontando essa fantasia vitoriana cujos ecos continuamos a sentir, este é um livro que não promete salvação, mas que acolhe a ausência como parte do que somos, celebrando-nos com tudo aquilo que nos integra.