Hergé e Tintin: o mito que suplantou o criador
Anunciavam-se como aventuras para leitores “dos 7 aos 77”, mas as histórias de Tintin continuam a ultrapassar, para a frente e para trás, as barreiras etárias que lhes foram dadas como meta. Hergé foi o responsável pela personagem, mas a intemporalidade alcançada por Tintin acabou por suplantar a fama do criador que lhe deu vida, como se comprova na exposição dedicada à obra e aos processos criativos do autor belga na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa (para ver até 10 de Janeiro de 2022).
No início era um rapaz que gostava de desenhar e que usava os traços no papel para se entreter, inventar cenários, contar aos outros as histórias que povoavam a sua imaginação. Nascido em 1907, na Bélgica, Georges Rémi estava longe de ser conhecido como Hergé e ainda mais longe de imaginar que uma personagem por si criada haveria de alcançar o reconhecimento universal. A exposição que o Museu Gulbenkian lhe dedica (originária do Museu Hergé, na Bélgica) atesta esse longo percurso, do renascimento de Georges Remi como Hergé, a partir da troca de posição das iniciais do seu nome, ao nascimento de Tintin, essa imensa herança em forma de personagem que o autor deixou à humanidade.
O percurso pelas salas da Gulbenkian que acolhem Hergé não é cronológico, afastando-se de uma exposição meramente biográfica. O foco desta mostra é a obra do autor, assumida como parte indestrinçável da sua biografia, sim, mas não se esgotando nesse elencar de acontecimentos devidamente ordenados para melhor arrumação histórica. Na verdade, e no que a cronologia diz respeito, a exposição começa pelo fim, exibindo uma capa de jornal que ilustra de modo muito claro esta contaminação permanente entre obra e autor de que o percurso de Hergé é exemplo. O jornal é o Libération do dia 6 de Março de 1983 e a capa, em fundo negro, mostra uma vinheta redonda com Tintin caído de bruços e Milou uivando a fala «Tintin est mort».
Foi Hergé que morreu uns dias antes desta edição do jornal, mas é Tintin que é chorado na primeira página, com honras que só as grandes figuras costumam merecer.
A partir daqui, o itinerário organiza-se em núcleos que propõem uma leitura coerente sobre o processo criativo de Hergé, convocando detalhes histórico-biográficos, entrevistas e depoimentos vários.
Escolhas e caminhos
Muitos autores de banda desenhada fizeram o percurso dos estudos artísticos, escolhendo, mais tarde, trabalhar nesta linguagem que cruza texto e imagem. Não foi o caso de Hergé, que iniciou a sua vida profissional no Le Vingtiéme Siécle, o mesmo jornal onde Tintin viria a estrear-se, mas como funcionário do departamento de assinaturas. O desenho era uma constante na sua vida desde criança, mas o seu meio social não permitia grandes devaneios artísticos.
Será sobretudo na década de 60 do século passado, muito depois de Tintin já ser um fenómeno mundial, que Hergé se dedica mais intensamente à pintura, como ilustra o conjunto de quadros patente na primeira das salas da Gulbenkian dedicadas temporariamente ao autor. O traço anda pelos territórios da abstracção, convocando as influências de pintores como Miró ou Jean Dubuffet, mas a dedicação à pintura é mais escape do que projecto de trabalho. Como diz o autor numa entrevista ao jornalista Numa Sadoul (com vários excertos a surgirem em diferentes salas desta exposição), «A banda desenhada é a minha única forma de expressão. Que mais tenho à minha disposição? A pintura? É preciso dedicar-lhe uma vida. E como só tenho uma – e bem avançada –, tenho de escolher entre a pintura e Tintin, não as duas coisas! Não posso ser um “pintor de fim de semana”, é impossível!». A afirmação é de 1971, revelando já um certo conformismo com o facto de Tintin se ter agigantado e tomado todo o tempo do autor.
O convívio de Hergé com as artes plásticas será, no entanto, uma constante a partir de certa altura, quando algum desafogo financeiro se torna realidade.
Quadros e esculturas de diversos artistas integram, hoje, o espólio do autor e alguns deles podem ver-se na Gulbenkian, atestando o interesse de Hergé pela expressão plástica e pictórica.
Obras de Jean Dubuffet e Jean-Pierre Raynaud, entre outras peças, compõem a pequena amostra das obras que foram rodeando o autor de Tintin. Entre elas, há uma que se destaca: a serigrafia intervencionada a tinta feita por Andy Warhol a partir de um retrato fotográfico de Hergé.
Da consolidação à mestria
A primeira das aventuras de Tintin começa a ser publicada em Janeiro de 1929, no Le Petit Vingtiéme, suplemento infantil de Le Vingtiéme Siécle que Hergé coordenará depois do seu regresso ao jornal, terminado o serviço militar que entretanto teve de cumprir. Tintin no País dos Sovietes revela várias fraquezas no modo de trabalhar a narrativa, que vive sobretudo de gags, bem como um desenho que ainda não se soltou nem encontrou as potencialidades da prancha como unidade narrativa. No centro, uma personagem então ainda desconhecida, mas onde ecoam de modo claro as linhas de Totor, o escuteiro que Hergé havia criado para uma série de banda desenhada na revista Le Boy-Scout Belge, em 1925. As semelhanças estão à vista na última sala desta exposição, onde se mostram algumas pranchas originais de Tintin no País dos Sovietes e exemplares e alguns esboços de Totor. Por outro lado, esta primeira aventura de Tintin revela igualmente anti-comunismo profundo do padre Norbert Wallez, director do jornal, e a escassíssima procura de informações e documentação, já que toda a história teve como fonte única o livro Moscou sans Voiles, de Joseph Douillet. Não deixa de ser irónico que a personagem de um repórter, Tintin, se estreie com uma narrativa onde a procura de informação credível não esteve, claramente, no centro das preocupações.
A exposição dedicada a Hergé não foge destes e outros temas polémicos que sempre se associaram ao autor, ainda que não os explore em profundidade.
Lá está a referência a Tintin no Congo, a segunda das aventuras do jovem jornalista, um rol de preconceitos raciais e culturais que têm atiçado a chama censória de quem prefere ver livros proibidos, em vez de discutidos.
Focando-se na obra de Hergé, a exposição não contempla as tantas obras que derivaram de Tintin, algumas sendo simples imitações, mas muitas fazendo o seu discurso a partir da ironia ou da paródia. O espaço não chegaria para tanto, mas talvez se possa referir, pelo menos, o livro Pappa in Afrika, do artista sul-africano Anton Kannemeyer (editada em Portugal pela Chili Com Carne), assinalando assim esse potencial de debate e pensamento que uma obra com tantas arestas como Tintin no Congo pode encerrar.
Com o passar dos anos, as histórias publicadas em episódios no Le Petit Vingtiéme (e noutras revistas, nomeadamente a portuguesa Papagaio, onde Tintin se estreou em Portugal, (seguindo depois para o Diabrete e o Cavaleiro Andante, antes de ter uma revista em nome próprio) deram origem a álbuns e a inúmeros produtos de merchandising, até chegarem à animação e ao grande ecrã. Entretanto, chegou a II Guerra, que interrompeu a publicação de Tintin no País do Ouro Negro, e depois disso Hergé viveu um período conturbado, com a acusação de colaboracionismo com o regime nazi (motivada pela sua colaboração com o jornal Le Soir, marcadamente anti-semita), tendo sido absolvido em 1946 sem, no entanto, conseguir afastar a acusação da sua biografia. Houve ainda tempo para outros trabalhos, entre séries de banda desenhada como Jo, Zette et Jocko, (em português, Joana, João e o Macaco Simão) publicada na revista católica Coeurs Vaillants, ou a dedicação à publicidade, na agência com o seu nome, onde produziu cartazes, capas de livros e vários anúncios. Tintin, esse, nunca deixou de ser o centro do trabalho do seu criador, mesmo quando foi preciso dedicar tempo a outras tarefas. A partir de certa altura, o jornalista de calças de golfe – que, curiosamente, vivia muitas aventuras, mas raramente aparecia a escrever reportagens – era já mais conhecido do que o homem que lhe deu a existência.
Uma personagem para a posteridade
Numa sala onde é possível ver a entrevista de Hergé ao programa Continents sans visa, da Télévision Suisse Romande (em 1960), onde o autor fala sobre influências, métodos de trabalho e algumas personagens, uma parede é dedicada às capas dos álbuns de Tintin traduzidos um pouco por todo o mundo. O efeito visual é intenso, reforçado pelo espelho no chão que parece prolongar aqueles livros em tantas línguas até um suposto infinito, uma babel subterrânea onde Tintin é o elemento de comunicação universalmente compreendido. Não é exagero.
Tintin prevaleceu sempre e foi-se engrandecendo no que ao reconhecimento diz respeito. Os métodos de trabalho de Hergé aperfeiçoaram-se, a linha clara sobre a qual haveriam de escrever-se inúmeros textos teóricos e de análise ganhou firmeza, as pranchas tornaram-se unidades complexas onde as referências cinematográficas vão fazendo algumas aparições (como em A Ilha Negra, com alguns originais patentes nesta exposição). Novas personagens vão nascendo: Dupont e Dupond, Capitão Haddock, Bianca Castafiori ou o português Oliveira da Figueira juntam-se a Tintin e Milou numa galeria que permite narrativas mais complexas, com traços psicológicos bem marcados e muito potencial para os apontamentos históricos, culturais e humorísticos.
De todos estes aspectos se dá conta nesta exposição, percorrendo pranchas originais, provas de cor, objectos recolhidos por Hergé numa dedicação documental que faltava nas primeiras histórias, mas a que o autor se dedicará com afinco, sobretudo a partir de O Lótus Azul, que começa a publicar-se em 1934. Em destaque numa das salas, esta obra merece atenção detalhada no percurso dedicado a Hergé, por inaugurar uma fase de intensa preparação documental a anteceder a criação de mais uma aventura de Tintin e também por ter nascido de um encontro real entre o autor e o artista chinês Tchang Tchong Jen, que esteve na Bélgica em 1934 e aí conheceu o criador de Tintin, inaugurando uma amizade que se prolongaria por muitos anos.
Com o passar do tempo e o acumular de histórias, Tintin tornou-se muito mais popular do que Hergé, adquirindo uma existência própria, uma espécie de cidadania universal que o fazia ser visto e reconhecido como pessoa real e não como personagem de ficção.
O seu criador refere isso mesmo na longa entrevista ao jornalista Numa Sadoul, num dos muitos excertos citados na parede desta exposição, quando diz que «Tintin [e todos os outros], sou eu, exactamente como Flaubert dizia: “Madame Bovary, sou eu!”. São os meus olhos, os meus sentidos, os meus pulmões, as minhas tripas!». Não será por acaso que o cartaz da mostra patente na Gulbenkian, bem como a capa do respectivo catálogo, sobrepõem o rosto de Tintin ao de Hergé. É o autor quem desenha a personagem nessa imagem, mas são os traços de Tintin que prevalecem. Ainda que Gustave Flaubert possa nunca ter dito, no leito de morte, as infames palavras que lhe são atribuídas sobre a permanência de Madame Bovary quando ele próprio já estivesse morto, também aqui o paralelismo prevalece: é possível que a posteridade esqueça Hergé, como vai esquecendo tantos nomes sem os quais o nosso imaginário colectivo seria pouco interessante, mas talvez Tintin esteja para além da possibilidade de esquecimento.