Hebe de Bonafini – A coragem que vem do útero
Hagamos un trato
Compañera, usted sabe que puede contar conmigo
No hasta dos o hasta diez, sino contar conmigo
Mario Benedetti
A mulher mais corajosa que ouvi dizer tinha uma ferida no coração que nunca cicatrizou. Ainda o dia despertava e um vizinho veio avisar, um carro vermelho rondava. Depois o telefonema: “Não encontramos o Jorge, Mamã.” Levaram o seu mais velho, encapuzado, agredido no meio da rua, arrastado para dentro do carro. Era o início da maior dor de uma mãe. Naquele ano vil, o telefone não tocou quando levaram Raúl — o seu segundo filho. Sumiu para sempre tal como namorada de Jorge, María Elena, que andou saltitando de esconderijo em esconderijo tentando enganar a maldade.
No dia em que levaram o seu primeiro filho, aquela mãe deixou de ser apenas a mulher com a instrução primária, a dona de casa a preparar o almoço, esperando para servir os rapazes quando regressavam da faculdade. Tornou-se Hebe de Bonafini, que seria a líder de outras tantas mães que enchem a Plaza de Mayo — em frente a sede do governo argentino — há 45 anos. Elas continuam marchando de braços dados, todas as quintas-feiras, não esquecendo e não deixando esquecer os seus filhos, filhas, netos e netas barbaramente subtraídos pelo regime ditatorial.
Mulheres simples, com uma fralda amarrada na cabeça, arrancando forças do útero, da maternidade, sobretudo de serem mulheres. Assumiram a luta com a única arma que dispunham para combater a bestialidade, os seus próprios corpos. Por não abrandaram quando foram espancadas, presas, torturas e mortas. Reclamaram para elas o desempenho de um papel que não as limitava como a sociedade esperava. Reinventaram-se e desprenderam-se da vida doméstica para tomar um lugar na praça pública como ativistas. Apropriaram-se da rua, do direito aos seus corpos. E como disse Bonafini, “…um corpo vazio, vazio dos filhos, que tiveram de começar a encher com ideias, com força, com trabalho e a sentir que voltavam a incorporar os nossos filhos ao corpo.”
Em 1979, depois do desaparecimento das fundadoras do grupo — vítimas da mesma brutalidade que combatiam — organizaram-se de forma estatutária sob a direção de Hebe de Bonafini. A associação que fundaram, criada e conduzida em exclusivo por mulheres, assumiu-se como revolucionária, opunha-se de maneira pacífica à violência e ao terror. Motivadas por um amor imenso e, em paralelo, pelo desejo de dignidade humana e de justiça social.
Num movimento que era e é de todas e de nenhuma, tornaram-se um coletivo politizado de mães-guardiãs dos trinta mil desaparecidos da Argentina. Convertendo a sua dor pessoal numa demanda que afetou toda a sociedade. Ao partilharem o espírito de luta com outras lutas, incorporaram novas causas, como a dos trabalhadores, dos camponeses, dos povos indígenas e dos estudantes que enfrentam regimes ditatoriais e injustiças sociais. Sem perceberem, as Madres da Plaza de Mayo iniciaram um movimento de resistência que se tornou da maior importância na América Latina e no mundo em função do resgate, da construção da memória histórica e da persistência na defesa dos direitos humanos.
Hebe de Bonafini faleceu faz pouco dias, aos 93 anos. “Mudou de casa” — como está descrito pelas suas companheiras no site da associação — deixando um legado enorme de amor, coragem, resistência e de um feminismo imprescindível em tempos que tão oprimidas vamos sendo.
Parte do que sou, devo a essas mulheres.