Crítica Sara Figueiredo Costa 18 Agosto 2022

Futuros baldios

Casal de Santa Luzia
Matilde Basto
Chili Com Carne

O mais recente número do fanzine Mesinha de Cabeceira, publicado há três décadas pela Chili Com Carne, vem assinado por Matilde Bastos, que compõe uma banda desenhada realizada no âmbito de um estágio (“não-explorador”, como se lê na ficha técnica da publicação) da London College of Communication, entre Março e Maio 2022. Impresso em risografia, num verde-garrafa que contrasta com o vermelho vivo da capa, Santa Luzia é uma história do quotidiano que reverbera inúmeras outras histórias, individuais e colectivas, que incorporam a leitura sem nunca precisarem de se enunciar.

Num terreno baldio urbano, uma série de gatos vivem sem regras nem donos. Os seus movimentos mostram-se nas primeiras pranchas, em desenhos riscados que registam um universo felino livre de humanos, uma espécie de território autónomo. Ainda assim, percebemos que um terreno baldio numa cidade dificilmente é um território livre: aqueles gatos dominam o baldio, mas estão separados da cidade por uma grade e não sabemos até quando serão livres habitantes de um pedaço de terra. E quando a narrativa se foca numa série de equipamentos de vigilância, essa pergunta torna-se mais presente.

Muda a cena e surge uma voz narradora que dá conta da sua rotina e da presença do baldio dos gatos junto à casa onde agora vive. Os pequenos momentos aleatórios do dia dos gatos transformam-se em indícios, lidos como sinais oraculares sobre o futuro próximo por quem narra. Essa leitura do aleatório como oráculo, alternando registos gráficos que ora se focam nos gatos, ora no espaço habitado e quotidiano de quem narra, indicia algo indefinível, um estado de mudança, uma antecipação que se transforma em angústia, pilar que atravessa Casal de Santa Luzia como um sustento.

O baldio dos gatos é um universo em si, um oráculo, uma “boca cósmica”, como se lê numa das vinhetas. É apenas um baldio ao lado da casa de quem narra, mas vai-se agigantando como algo mais. É na leitura dos sinais que essa concretização ganha o corpo possível, com a mudança a revelar-se na cidade e nas vidas de quem a habita. E é nesse momento que Casal de Santa Luzia se revela como eco da pólis, onde facilmente reconhecemos uma Lisboa presa nas malhas da especulação imobiliária, esse fenómeno que as secções de economia dos jornais tratam como algo intangível, explicando subidas e descidas de preços, mas que é, na verdade, uma espada real pendendo sobre as cabeças de quem aqui mora. Não há outra referência explícita a essa mudança concreta para além do anúncio da construção de uma “nova zona comercial”, já perto do fim da narrativa, e em vez de uma história-denúncia temos uma frágil e complexa filigrana de ansiedades, desconfianças e sinais a sustentar um enredo que é cristalino sem nunca ser literal. Tal como são as vivências de parte dos habitantes da cidade, os que não podem pagar as rendas em subida ensandecida, nem sentar-se nos cafés gourmet, nem existir de modo aceitável por entre esta espécie de parque temático em que Lisboa se transformou, sendo nós parte dos equipamentos de entretenimento para os turistas que pagam para ver.

Quem diz Lisboa diz tantas outras cidades espalhadas pelo mundo. Nada disto é dito ou representado de modo literal, mas é esse ambiente de angústia perante uma cidade que muda expulsando os seus habitantes que paira sobre Casal de Santa Luzia. Os gatos ficarão sem o seu baldio quando nascer a nova zona comercial, assim como quase todos acabaremos expulsos da cidade. Os gatos, vigiados sabe-se lá por quem e ameaçados pela nova construção, somos inevitavelmente nós. Que alguém nos deixe um qualquer baldio suburbano para usufruto e umas peças de ração parece ser a única aspiração possível para o futuro.

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