Crítica Sara Figueiredo Costa 2 Junho 2025

Dias-a-fio
Alexandre Piçarra
Chili Com Carne

Há tabaco com fartura neste livro de Alexandre Piçarra, e não é apenas no cinzeiro que se vai enchendo e esvaziando de beatas à medida que se somam as histórias. Dias-a-fio tem cenário na Lisboa dos anos 1990 a 2010, um tempo suficientemente longo para acompanharmos algumas mudanças (novas drogas que circulam, edifícios que se constroem), e os diferentes episódios espelham vertentes da cidade e do seu quotidiano que não servem de postal turístico, mas que retratam fielmente algumas vidas. O tabaco, esse, não é apenas adereço ou vício, mas um modo de enganar a ansiedade e fingir que, apesar da adrenalina e da fúria, a desilusão não atravessa grande parte destas histórias.

Não conhecemos a vida e o passado destas personagens com detalhe, nem tal faz falta para a narrativa que aqui se constrói, alicerçada em episódios soltos que permitem intuir um fio quotidiano ao longo dos anos que vão passando. Entre cigarros fumados às escondidas, blasfémias que se confessam ao padre e algumas sessões de pancada, os miúdos indisciplinados do primeiro episódio vão crescendo, mas não é tanto acompanhar com precisão a história de cada um que faz viver este livro; é, antes, a visão fragmentada de um conjunto de vidas que se vão desenvolvendo nos intervalos mais ou menos avariados da sociedade. Dias-a-fio não é uma história com princípio, meio e fim, nem apresenta qualquer espécie de moral que permita às boas consciências conhecerem um fim justo, merecido ou redentor para qualquer das personagens. A vida é o que é, certamente emergindo como tal de uma série de condicionantes de ordem social, económica e política, mas os episódios que aqui se desfiam e a unidade que formam no seu conjunto parece mais interessada em mostrar, em entrar no espaço do quotidiano e das suas tensões, do que em contar uma história que encontre culpados e vítimas.

O traço de Alexandre Piçarra é fino, nervoso, riscado, próximo do registo daqueles desenhos que se faziam com fúria e esferográfica na margem do caderno escolar, para passar o tempo, enganar o tédio, despejar alguma raiva contra o mundo. Entre estações de caminhos de ferro grafitadas, boleias na garupa do eléctrico, fugas à polícia e substâncias várias – dos shots contínuos às drogas sintéticas – as personagens de Dias-a-fio surgem com fisionomias quase grotescas e sempre com semblante de quem está pronto para as duas reacções instintivas da sobrevivência: fugir ou lutar. Quando as revistas dos anos 90 e 2000 abraçaram uma suposta modernidade e desataram a publicar longos artigos, sempre muito ilustrados, sobre as supostas tribos urbanas, esqueceram-se de confirmar que as fronteiras não estavam tanto entre os punks e os betos, os metaleiros ou os chungas, gente que tantas vezes usava a farpela para tentar amparar-se nalguma identidade colectiva; as fronteiras estiveram sempre nas classes, no acesso que cada um e cada uma tinha ou não tinha a essa ilusão chamada “elevador social”, e ainda hoje andamos a colher os restos dessa fantasia. Os grafitis nas estações, as drogas na rua, os abusos de poder policial e uma certa ideia de no future, esses ainda cá andam todos.

Uma nota extra textual: Dias-a-fio é o vencedor da última edição do concurso Toma lá 500 paus e faz uma BD, uma organização da editora Chili Com carne que tem permitido a tantos e tantas autoras de banda desenhada concretizarem os seus projectos e partilharem-nos com o público leitor através de livros.

→ chilicomcarne.com