Formar leitores de Saramago: primeira abordagem
Sendo o conto A Maior Flor do Mundo o único texto escrito por José Saramago que se destina idealmente ao leitor infantil, cabe a este livro a responsabilidade simbólica de ser uma primeira porta de entrada provável para a obra do autor.
Partindo desta constatação, como pode o serviço educativo da Fundação José Saramago, cuja principal função é a de divulgar e promover a leitura da obra saramaguiana, explorar o livro?
Em primeiro lugar há que por em perspectiva o contexto: o conto foi adaptado a um filme de animação que facilmente pode ser visionado na internet o que logo multiplica o acesso à narrativa, entre o público do primeiro ciclo e do pré-escolar. Em segundo lugar, foi este livro uma das propostas integrantes das metas de educação literária para o 4º ano, pelo que a grande maioria dos alunos tiveram ou têm contacto com o conto na sala de aula. Então, não há como jogar com o efeito surpresa porque ele não existirá. Finalmente, a componente lúdica é sobejamente explorada pelas sugestões que o ilustrador André Letria deixa no final do livro (edição Porto Editora) e mesmo que assim não fosse, é o próprio narrador quem desafia o leitor a recontar a história.
Sem efeito surpresa perante a leitura e sem rasgo para a criatividade, parece que sobra pouco. Que caminho seguir que não seja repetitivo ou enfadonho?
É preciso regressarmos ao motivo essencial: a promoção da obra. A porta de entrada.
O que nos leva a estabelecer empatia com um livro? A nossa subjetividade, o nosso contexto, a nossa experiência leitora. Enquanto mediadores, podemos intervir na circunstância e criar experiências que dialoguem com outras já vivenciadas e que permaneçam no futuro. Sem garantias, esboçamos um atelier. A partir daqui, acontece como no conto, quando o menino se questiona: “Vou ou não vou? E foi.”
Não é um atelier muito divertido, não há jogos, danças de cadeiras, vendas, estímulos sensoriais, escrita criativa. Tudo se resume a uma dinâmica: escutar, pensar, falar. O objetivo é dar aos grupos de alunos do 4º ano que nos visitam algumas ferramentas para a compreensão da leitura. Não apenas ferramentas para ler A Maior Flor do Mundo mas sobretudo para ler o conto à luz da subjetividade e do sentido crítico de cada um. A nossa porta de entrada para ler José Saramago é desafiar leitores a pensarem sobre o que significa gostar de ler.
O desafio que propomos aos grupos é que sejam eles a avaliar a qualidade da narrativa. Assim, criamos um objetivo que orientará a audição da história que muitos já conhecem. Desta feita não se trata de descobrir, trata-se de ajuizar.
Como podemos avaliar o conto? Há quem arregale os olhos, quem abra a boca ou faça um esgar (que nos tempos recentes fica mais disfarçado por trás da máscara).
Precisamos de critérios, ou cada um decidiria simplesmente se gostava da história ou não. Para que estes possam ser colectivos, é importante que todos, ou quase todos, contribuam. Lançamos uma pergunta: “O que tem de ter uma história para ser boa?” As regras apresentam-se: cada um pode indicar uma característica. A mediadora regista-as, uma a uma. Serão estas características que, depois da audição do conto, servirão para o avaliar: se chegarmos à conclusão de que o conto tem a maioria das características requeridas pelo grupo, podemos considerar que é bom. Se não tiver, não cumpre os critérios de qualidade dos seus críticos.
Ao longo de várias dezenas de sessões, foram muitas as características que se repetiram: do tema à estética, das personagens ao desfecho.
Outras oscilavam em função da tal experiência leitora de alguns, que impunham juízos aos próprios critérios, como criatividade, palavras difíceis ou um título apelativo.
Logo nesta criação coletiva havia identificação entre pares e comentários sobre opiniões diversas: uns preferem livros com imagens, outros sem; para uns o final aberto aguça a curiosidade, a outros provoca angústia; há quem deseje ardentemente reencontrar os temas de ação e violência de alguns videojogos, tanto quanto outros replicam formas cómicas como as que encontram em O Diário de um Banana ou nos livros de David Walliams.
Antes de se iniciar a leitura, a lista já antecipa um certo nervoso miudinho… Na verdade, os grupos não querem que o livro não passe no crivo que livremente escolheram. E esse poderá ser o primeiro passo para que intuam algo de muito importante: nem sempre o gosto se esgota no prazer do reconhecido, também o que foge desse lugar e nos provoca desconcerto e inquietação pode ser bom. A experiência do prazer e da fruição não são idênticas mas ambas formam o leitor, nomeadamente o literário.
Depois da agitação em torno dos critérios, com pequenos diálogos e comentários que naturalmente surgem entre pares, é tempo de ouvirem ler o livro cujas ilustrações muitos desconhecem. A espaços, o trunfo das novas imagens funciona para lhes captar a atenção e promover a antecipação ou compreensão de uma passagem do texto. O laranja, por exemplo, ajuda a desmontar a metáfora que associa o planeta Marte ao desconhecido mas aquela que permite uma relação mais próxima com o sentido global da narrativa é a da cabeça do menino, que aparece no início e no final do conto, indicando o efeito que teve a sua ação transformadora.
Finalmente, quando se conclui a leitura, é chegado o momento da avaliação. Um a um, os critérios (por vezes mais de vinte) são enunciados e propostos a discussão. A narrativa tem ação? Sim ou não? E fantasia? O debate vai-se avivando com trocas de argumentos entre as partes em desacordo. A mediadora pergunta aqui e ali se os argumentos são convincentes. Quando não é óbvio o acordo para uma maioria, procede-se a uma votação de braço no ar. Naturalmente, os alunos interpretam o texto, avaliam detalhes em busca de justificações e todo o processo tradicional e vertical de perguntas colocadas pelo professor/mediador se vê substituído com sucesso pelo diálogo entre pares: “Há fantasia porque aquela flor não existe nem o menino atravessa o mundo todo.”; “Há um herói evidente, o menino.”; “Há aventura quando o menino decide explorar o desconhecido e amor, dos pais pelo menino e do menino pela flor.” Já a propósito da ação, muitas vezes força-se a que exista.
Nestes processos de interpretação os alunos não se apercebem do quanto refletem, do quanto questionam e de como o seu pensamento vai ao encontro do modelo argumentativo. Ainda, aqueles para quem é mais difícil aceder a sentidos figurados e desenvolver inferências, ganham com a explicação dos colegas, cujo discurso tem um léxico e uma estrutura mais familiar. Há sempre quem se afaste da narrativa e dê justificações com base em acontecimentos ou descrições que não estão efetivamente no texto mas também neste caso é mais fácil de recentrar as ideias de uns procurando os comentários dos outros.
A mediadora não pode desvalorizar as ideias de nenhum elemento do grupo, mesmo se o seu pensamento está a ir noutra direção. Se um aluno defender que há viagens no conto porque o menino vai a Marte, à Lua e atravessa o rio Nilo, poderemos questionar: “Todos estes locais são referidos. Vocês acham que ele vai mesmo a estes lugares? Podemos viajar só na nossa cabeça?” Perante esta interpelação o grupo reage, haverá quem diga que ele não viaja, que só vai de casa à floresta e até à colina onde está a flor. Que não há viagem nenhuma. E, se ninguém chegar ao efeito retórico sozinho, se ninguém falar do sacrifício do menino ou do desconhecido, a mediadora pode voltar à carga, se considerar que o grupo está interessado e a corresponder.
O debate é acesso, por vezes com várias crianças a tentarem ser ouvidas em simultâneo. O equilíbrio reside justamente em não impedir a sua espontaneidade enquanto as motivamos a ouvir-se entre si. O desafio é exigente para elas, é cansativo pensar e ouvir o outro.
Quando nos aproximamos do final da avaliação da obra ressaltam duas conclusões. No início as características que a maior parte dos alunos indica derivam de uma experiência de leitura mais linear. Muitos lêem fórmulas de aventura, diários com personagens e situações cómicas, ou trazem para o livro ideal a guerra, a luta, o terror e a violência das séries e videojogos. Há uma certa formatação no acesso ao livro que deriva de muitos factores, nomeadamente de uma espécie de normatização do próprio consumo, legitimado por processos agressivos de comunicação que tendem a ganhar terreno sobre a divulgação e a problematização. Apesar disso, estamos ainda num universo em que a leitura tem uma presença positiva, se não em casa na escola.
Perante esta limitação de gosto, as alunas e os alunos não ficam agradados se percebem, no final, que há qualquer risco de A Maior Flor do Mundo não ser considerado bom. Parece paradoxal já que é evidente que o estilo da obra foge completamente das lógicas a que estes leitores estão habituados.
Porém, os comentários finais de muitos são no sentido de que o conto é bom, embora talvez falte um bocadinho mais de estória. E que percebem o texto, apesar das palavras difíceis.
A verdade é que nem eles sabem muito bem se gostam e por que razão gostam. Há qualquer coisa na experiência que os leva a considerar que não deve ser mau e o critério das características compatíveis ajuda-os e suporta essa intuição, variando consoante os grupos e as características elencadas previamente.
É aqui que acreditamos que podemos deixar a porta aberta para novas leituras: o desconcerto e o estranhamento não são motivo de rejeição. Inscrever, mesmo que à superfície, na experiência leitora das crianças, um contexto em que estas sensações acontecem sem tédio ou frustração poderá contribuir para uma reação positiva a outras obras e experiências semelhantes, ainda que individuais, no futuro.