Espelho Meu Andreia Brites 20 Agosto 2021

Eu falo como um rio
Jordan Scott
Sydney Smith
Fábula 
Tradução de Susana Cardoso Ferreira

A metáfora ocupa muitas vezes o lugar do indizível. Eu falo como um rio é um álbum paradigmático. Como aproximação poética faz chegar uma emoção ou um estado de alma que não se traduz numa descrição literal. Nessa relação imagética e sugestiva estabelece-se parte significativa do processo de interpretação leitora e do mundo.

Apesar da simplicidade das palavras, da cadência enunciativa do discurso do protagonista e do contexto social facilmente reconhecível, é na metáfora que reside justamente essa aproximação entre o sofrimento do menino que não consegue falar e o leitor.

A descrição figurada da gaguez, associada aos sons das letras e a um efeito incapacitante na boca do narrador, cria imagens de força que representam a sua angústia, vergonha e esforço e com as quais o leitor se pode identificar. 

O silêncio e a lentidão caminham a par com os vários quadros da narrativa visual que se sucedem oferecendo duas perspectivas de olhar, a do protagonista, mais difusa, e a exterior, contextual, mais clara. A ausência de contornos, a luz e a sombra e a pluralidade de ângulos realçam a presença do reflexo do rapaz, seja na janela do quarto, seja no espelho do carro do pai ou noutras situações menos claras. Tudo remete para uma interioridade emocional que se intui. 

O momento de mudança acontece quando o pai leva o filho a passear junto ao rio e lhe revela, também através da metáfora, um lugar de pertença, uma possibilidade de não se sentir excluído pela sua gaguez.

Ao contrário de um discurso moral ou pedagógico, a associação do ato de fala da criança ao movimento do rio torna tudo mais natural e genuíno. Particular e universal. A página dupla que se desdobra funde o menino e a sua imagem com o rio, quando avança pela água dentro. 

No final do livro a nota explicativa de Jordan Scott informa-nos que a narrativa é autobiográfica. 

Este álbum, pela sua coerência estética, equilíbrio, ritmo e subtileza textual e visual, tem um valor literário e artístico que contraria as tendências deterministas. O pior que que dele se pode dizer é que é um bom livro para falar de gaguez.

→ fabula