Crítica Sara Figueiredo Costa 13 Janeiro 2022

Eterno presente

As Indecisões de Janus
Pedro Nora
Fojo

O núcleo do mais recente livro de Pedro Nora lê-se como uma banda desenhada sem texto nem personagens. Há palavras na totalidade da obra, no entanto, que vem acompanhada de um extra-texto em forma de plaquete, contendo quatro textos de Rui de Almeida Paiva, Liliana Coutinho, Virgínia Valente e Dayana Lucas. Quanto às personagens, talvez cumpra ao leitor esse desígnio de as assumir, imaginar e, enfim, ver, quer em modo de alteridade, quer olhando para estas pranchas como um espelho onde ver o próprio reflexo.

Este é um livro que dialoga sem subterfúgios com o tempo comum que temos vivido, o da pandemia, dos confinamentos, do afastamento social, mas o diálogo com o presente não se esgota na actualidade, apontando igualmente para um outro tipo de presente: uma espécie de permanência que nos coloca em relação com o espaço, referência sem a qual seria difícil imaginarmos a vida. O espaço de As Indecisões de Janus é limitado, podemos lê-lo como sendo sempre o mesmo em todas as páginas – alterado por diferentes luminosidades, ângulos e texturas – ou como outro, uma sucessão de espaços. Por entre as linhas e a volumetria, não se vêem personagens nem se distinguem objectos quotidianos, mas reconhece-se a familiaridade do local, uma espécie de abstracção espacial remetendo para um lugar limitado, fora do qual não somos nem estamos (e fica por saber se poderemos estar, e como). Este é um espaço despojado, simultaneamente lugar de possibilidades e de restrições.

Na pequena plaquete que integra o volume, Liliana Coutinho escreve: «Olhar a 180º ou a 360º. Praticar a quase distracção, a atenção descentrada, para abrir a amplitude do que se vê. Olhar para o menos óbvio (…).»

E, mais adiante: «Não olhar para nada nem lugar algum, mas dar o passo para o habitar plenamente e saber que é a partir desse lugar que se vê.» Em diálogo com a sequência de imagens de Pedro Nora, todos os quatro textos convocam entradas possíveis no espaço desenhado. As imagens não exigem um texto para as dotar de sentidos, pelo contrário, mas a inclusão destes textos como parte integrante do livro abre necessariamente caminhos de leitura que desafiam a uma reflexão sobre o presente pandémico, ao mesmo tempo que colocam essa reflexão fora de barreiras cronológicas estritas. O confinamento colocou muitos de nós numa relação demasiado próxima com o espaço que habitamos ou empurrou-nos, em muitos casos pela primeira vez, em direcção à necessidade de reflectir sobre essa proximidade, que talvez sempre tenha existido? As Indecisões de Janus não oferece resposta, mas tem o condão de suscitar muitas perguntas à medida que nos leva a ver o espaço a partir de tantas possibilidades.

Sob a égide de Janus, divindade romana que encimava as entradas, lembrando que estas eram também saídas e, logo, passagens onde espaço e tempo confluíam, o livro de Pedro Nora é simultaneamente um objecto criado pelo tempo que vivemos e um artefacto que permite olhar para o tempo sem limites de alcance, focando-se para isso num espaço e nas suas mudanças sequenciais, ora porque o espaço muda, ora porque muda quem olha para ele.

Que tenha sido preciso um encerramento indesejado em casa para que olhássemos para o modo como existimos no espaço, e para que convocássemos o tempo como duplo indissociável deste, só confirma a urgência de uma reflexão que talvez ande perdida por entre tanta velocidade, tanta simultaneidade, tantos ecrãs em directo de uma qualquer parte do mundo.

Não é que tudo vá ficar melhor depois disto, como auguraram os oráculos da felicidade e do bem-estar, mas se formos sendo capazes de pensar nos modos em que somos e nas tantas declinações em que existimos, nem tudo terá sido apenas vã tragédia.

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